Dois pesos e duas medidas para preservar a ética:
irrepetibilidade e retroatividade do encargo alimentar
Em sede de alimentos há dogmas que ninguém questiona. Talvez
um dos mais salientes seja o princípio da irrepetibilidade.
Como os alimentos servem para garantir a vida e se destinam à aquisição
Há um punhado de outras regras que regem a obrigação
alimentar e que também dispensam justificativas. Uma
delas é a necessidade de ser obedecido o parâmetro possibilidade/necessidade,
que até já passou a ser chamado de trinônio: proporcionalidade/possibilidade/necessidade.
O princípio da proporcionalidade é que norteia a fixação dos
alimentos, tendo por pressuposto as possibilidades do alimentante e as
necessidades do alimentando. Como o encargo decorre do poder familiar, do dever
A imperativa necessidade de ser obedecido o critério da
proporcionalidade é de tal ordem que a lei chega a afirmar que a sentença que
fixa os alimentos não faz coisa julgada (LA art. 15). Claro que a doutrina
corrigiu este exagero do legislador ao demonstrar que a assertiva esta
condicionada à ponderação rebus sic stantibus. Flagrada afronta ao princípio da
proporcionalidade ou mudança de um dos vértices da equação
possibilidade/necessidade permitem, a qualquer tempo, que seja revisado o valor
dos alimentos.
Como se trata de obrigação que se propaga no tempo, as
demandas revisionais são as que mais freqüentam as varas de família. Credores e
devedores buscam a majoração, a redução ou a exoneração dos alimentos, sempre
sob o fundamento de estar rompida a regra da equidade de valores.
Em face do temor da morosidade da justiça, não há pretensões
referentes a alimentos que não tenham o colorido da urgência. Aliás, a Lei de
Alimentos determina que o juiz fixe alimentos provisórios já ao despachar a
inicial, mesmo que o autor não os requeira. Só poderá deixar de fazê-lo se a
parte expressamente afirmar que deles não necessita (LA, art. 4º).
Não só as ações de alimentos vêm acompanhadas do pedido de
tutela antecipada. Também as ações revisionais e exoneratórias
são todas acompanhadas de pedidos liminares. Ninguém quer esperar a audiência
de conciliação, a resposta do réu, a produção das provas, a coleta dos
depoimentos e a manifestação do Ministério Público. Todos vêm a juízo alegando
iminência de dano irreparável para obter liminarmente o direito reclamado.
Claro que alimentos provisórios precisam ser deferidos desde
logo pois – para usar a frase que consagrou Betinho – a
fome não espera. Fixados alimentos provisórios em sede liminar, sem ao menos
ouvir o réu, na medida em que aportam elementos probatórios aos autos, o valor
dos alimentos provisórios vão sendo redimensionados,
para mais ou para menos. Os novos valores definidos a partir de novas
revelações e provas impõem que o quantum
fixado passe a valer desde logo. Afinal, as decisões anteriores foram exaradas
com um espectro de cognição mais limitadas. Esta regra vale até quando a
redefinição do valor dos alimentos é levada a efeito na sentença. Apesar do que
dizem o art. 14 da Lei
Como as ações alimentárias sempre
se fazem acompanhar de pedido liminar e como há possibilidade de o valor fixado
sofrer variações ao longo da instrução da demanda, encorajou-se o legislador a
emprestar eficácia à sentença para aquém de seu trânsito em julgado. Daí o
comando constante da Lei de Alimentos, que empresta “em qualquer caso” efeito
retroativo à data da citação (LA 13 § 2º).
A regra, de singeleza ímpar, traz determinação clara e se
justifica na máxima: a citação constitui o réu
Dita regra tem outra razão de ser. Não dispondo a sentença de
eficácia ex tunc,
ou seja, não passando a ser exigível o encargo desde a citação, claro que o réu
terá todo o interesse em ver a ação arrastar-se, pois, enquanto não julgado o
processo, simplesmente estaria livre do dever de pagar alimentos. A mesma
lógica vale não só para as ações de alimentos, mas também para as demandas em
que o autor pleiteia a majoração do pensionamento. Às
claras que não tem o réu qualquer interesse em ver a ação ultimada. Vindo a
majoração a ocorrer, e não dispondo a decisão de efeito retroativo, não é
difícil imaginar as manobras protelatórias de que fará uso para retardar o
trânsito em julgado da sentença. O decurso de cada mês o livra de uma prestação
alimentícia.
O mesmo cabe ser dito quando, fixados alimentos provisórios,
são eles majorados na sentença. Este fato é muito comum, principalmente nas
ações
Também quando da propositura da ação de alimentos, difícil ao
autor comprovar os ganhos do réu para subsidiar a decisão que fixa os alimentos
provisórios. Aliás, este é o motivo que leva à inversão dos ônus probatórios.
Ao autor basta provar a obrigação do réu, cabendo a este comprovar seus ganhos
e rendimentos. Proposta a ação pelo filho, desconhecendo as possibilidades do
genitor com quem muitas vezes não convive, de modo
muito freqüente a verba provisória é fixada de modo acanhado. É no decorrer da instrução probatória que
consegue o juiz fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade.
Bastam esses exemplos para evidenciar que os alimentos fixados precisam
retroagir à data da citação. Se assim não fosse, às claras que tudo fará o réu
para retardar o deslinde da ação.
Toda esta lógica que salta aos olhos
Portanto, se a decisão final fixa alimentos em valor superior
aos provisórios, o novo montante alcança todas as parcelas vencidas desde a
data da citação. Porém, se a sentença fixa a pensão em valor menor que o
estabelecido em sede liminar, o novo montante vale somente para as prestações
futuras. Portanto, é do confronto entre alimentos pretéritos e futuros,
provisórios e definitivos que se identifica se a sentença dispõe de efeito ex tunc ou ex nunc. O que
parece ser uma contradição - dois preços e duas medidas - e uma afronta ao
princípio da igualdade, não o é.
Os motivos são vários. Quando a sentença fixa montante maior
ao estabelecido anteriormente ou em sede liminar, impor o pagamento do novo
valor desde a data da citação não estimula o devedor a fazer uso de mecanismos
para evitar o deslinde da ação. Não se pode olvidar que os alimentos
provisórios são fixados em sede de cognição sumária. Quando são
estabelecidos em definitivo – diante da prova das reais condições das partes –
este era o montante que deveria ter sido pago desde o princípio. Esta é a
regra. Mas isso só vale quando há majoração do encargo. Se houve o achatamento
ou a exclusão dos alimentos, não dá para invocar o mesmo comando, pois não é
possível determinar que alimentos sejam restituídos.
Mas esta não é a única razão para admitir o tratamento
diferenciado a situações díspares.
Admitir a possibilidade de fazer retroagir o valor fixado a menor – ou
até
Está é a única lógica que a situação impõe,
sob pena de o ingresso da demanda revisional intentada pelo alimentante
incentivá-lo a deixar de pagar os alimentos ou a proceder a redução do seu
valor do modo que melhor lhe aprouver.
Admitir tal daria ensejo, inclusive, à suspensão do processo de
execução. Sob o fundamento de que o encargo alimentar pode ser reduzido ou
excluído, e admitida a possibilidade de ser concedido
efeito retroativo à mudança, tal geraria
A regra do inc. II do art. 13 da Lei de Alimentos não tem
aplicação quando o valor dos alimentos foi reduzido ou houve a exoneração do
encargo alimentar. Prevalece o princípio da irrepetibilidade
dos alimentos. Portanto, achatado o valor dos alimentos ou extinta a obrigação,
a decisão judicial não dispõe de efeito retroativo, não alcançando as parcelas
vencidas e não pagas. Somente quando os alimentos são majorados, por meio de
sentença transitada em julgado, é que se pode falar em efeito retroativo à data
da citação.
Qualquer outra solução gera impasse absolutamente desarrazoado. Primeiro estimularia o devedor a cessar o
pagamento dos alimentos ao intentar a ação de redução ou de extinção dos
alimentos, aguardando o provável resultado positivo da ação. Igualmente,
proposta execução, às claras que o devedor irá ingressar com ação revisional ou
de exoneração, podendo requerer a suspensão da demanda executória até o
julgamento da ação em que procura achatar ou excluir o encargo alimentar. Tudo
isso para se beneficiar do efeito retroativo da sentença e deixar de pagar o
valor devido.
A retroatividade aceita por alguns julgados sequer leva em
conta a afronta ao princípio da igualdade, pois pune o alimentante que cumpre
com o pagamento e beneficia o devedor inadimplente. Vetada a devolução das
parcelas pagas, o que pagou não pode pleitear compensação ou cobrar as
diferenças, enquanto aquele que se quedou em mora irá beneficiar-se com o
descumprimento do encargo alimentar.
A não ser que se pretenda romper com o princípio da irrepetibilidade, não há como sujeitar o credor dos
alimentos a se ver processado para devolver as parcelas percebidas desde quando
foi citado na ação revisional ou exoneratória. Assim,
por qualquer ângulo que se atente ao tema, não é possível deixar ao bel prazer
do devedor
Elementares princípios éticos não permitem.