A criação de
reserva de cotas para estudantes “negros” e “pardos”
nas universidades
brasileiras:
Uma tentativa de
resgate histórico ou uma violação à igualdade social?
INTRODUÇÃO
A discussão sobre o acesso de alunos “negros”
aos cursos superiores nas instituições públicas brasileira através do sistema
de cotas, assume um valor significativo no campo social e jurídico em
decorrência da necessidade de resgatar a dívida histórica, moral e social que o
Estado têm com esses sujeitos, os quais foram historicamente tratados com
desigualdade, vivendo em sua maioria na pobreza, miséria, e quando inseridos no
mundo do trabalho, assumem posições subalternas ou de subempregos,
desempenhando serviços difíceis e segregadores de seu real valor humano.
A presença do “negro” na estrutura
social brasileira a partir do processo de colonização é relevante ser
considerado, para que se possa compreender o quanto as mudanças sociais
apresentadas a partir da década de 1980 que culminaram com a promulgação da
Constituição de 1988, pautada em princípios democráticos visando contribuir
para o resgate da cidadania e da minimização da desigualdade, veio contribuir
para a organização dos grupos sociais, minorias étnicas e outras categorias de
sujeitos sociais a reivindicarem direitos, para que projetassem possíveis
condições dignas de sobrevivência.
Historicamente o “negro” no Brasil foi
destituído do direito de participação significativa na vida social, devido às
condições de trabalho e de vida impostas aos seus antepassados, que na função
de escravos numa economia agrária nenhuma oportunidade era concedida para a
freqüência à escola, comprometendo suas perspectivas de ascensão social. As
mobilizações de grupos organizados em defesa dos direitos da “raça negra” no
Brasil tomaram corpo a partir da consolidação da democracia, em que a luta por
direitos e reconhecimento da contribuição da cultura africana se intensificou
em nosso país.
O regime de cotas para “negros” nas
universidades públicas vem de encontro às necessidades dos grupos sociais que
representam as minorias étnicas que lutam para conceder a dignidade a esses
sujeitos, buscando através da elevação do nível de escolarização minimizar as
perspectivas de acesso ao mundo do trabalho e transformação da realidade
existente na sociedade brasileira, em que os níveis de escolarização na
educação superior ainda são restritos, impedindo que o “negro” alcance postos
de trabalho e posição social mais elevada.
É
fundamental que se discuta a temática a partir da perspectiva histórica,
doutrinária e constitucional, buscando-se avaliar os fatores históricos que
acarretaram a necessidade de tal resgate social, bem como analisar os reflexos
assumidos na sociedade quanto às ações voltadas para a concessão de cotas de
vagas para alunos “negros e pardos” nas instituições de ensino superior pública
que tramitam no poder judiciário.
HISTORICIZANDO
A PRESENÇA DO “NEGRO” NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO BRASIL
O processo de organização social no
Brasil teve início com a colonização em 1500, sendo que na tentativa de
explorar os recursos naturais do recém descoberto território, o governo de
Portugal estabeleceu na colônia um modo de produção pautado no trabalho
escravo. A chegada de “negros” africanos ao Brasil fazia parte de uma
empreitada do governo português, que se dedicava à comercialização de escravos
africanos, sendo uma importante atividade para a geração de receita além do
aproveitamento da força de trabalho do “negro” que era levado à exaustão, por
vezes até à morte, sendo tratado como ser inferior aos animais que coabitavam
nos ambientes de trabalho, constituindo-se na maioria das vezes em latifúndios
agrários.
O “negro” trazido ao Brasil na condição
de escravo, teve sua dignidade e cidadania negada, e submetido a condições de
trabalho adversas, se manteve numa posição subalterna, sofrendo todo tipo de
maus tratos, tortura, mutilação, açoitamentos, amputação de membros, lesões que
causavam cegueira, serventias desumanas e bestiais, inclusive sexuais, e de acordo
com Romanelli (2005), na colônia portuguesa instalada na América, ele não tinha
direitos sequer de freqüentar a escola, o que resultou na produção de um
elevado contingente de analfabetos remanescentes dessa etnia em praticamente
todo o país.
A negação do acesso à escola ao “negro”
contribuiu para a condição de pobreza e de miséria desses sujeitos e de seus
remanescentes na sociedade brasileira, pois as mudanças no modo de produção
agrário pelo urbano- industrial, repercutiu na substituição da força de
trabalho manual pela mecânica, exigindo melhores e maiores níveis intelectuais,
especialmente o domínio da leitura, escrita e do cálculo, levando a permanência
deles à subalternidade, desprovidos de qualquer preparo intelectual em sua
imensa maioria.
A escola pública oferecida pelo Estado
para atender as necessidades das classes populares nos diferentes períodos
históricos, inviabilizou a progressão social de “negros e pardos”, pois os
investimentos estatais eram restritos, e impediam que a escola funcionasse com
níveis de qualidade satisfatórias.
Como a maioria da população “negra” não
detinha as habilidades que o novo momento apresentava, sucessivamente foram
excluídos das perspectivas de acesso a níveis mais elevados na estrutura
social. As mudanças que se desenharam na sociedade brasileira, decorrentes do
avanço do modo de produção capitalista, colocaram a população “negra” à margem
das oportunidades de acesso a condições de vida digna, morando nas áreas
periféricas, ou nas zonas rurais em terrenos menos férteis, distantes, e
desprovidos da assistência estatal, praticando a agricultura de subsistência, e
com baixos níveis de escolarização.
No
Brasil, o processo de modernização excludente atravessa a história e arquiteta
instituições que produzem mais de 55 milhões de pobres, dos quais 24 milhões em
condição de pobreza extrema. Além da vergonha que esses valores representam,
será que a pobreza está "democraticamente" distribuída em termos
raciais, preservando um perfil socioeconômico sem viés racial? Não. Os “negros”
representam 45% da população brasileira, mas correspondem a cerca de 65% da
população pobre e 70% da população
A realidade vivenciada pela população
“negra” no Brasil, decorre do modelo de estruturação social altamente desigual
que se construiu, e que teve continuidade a partir do controle do poder
político e econômico pelos grupos conservadores que perdura até os dias atuais.
Nesse caso, a população “negra” brasileira ocupa a base da pirâmide
social em todas as variáveis do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, bem
como de indicadores tais como saúde, educação, trabalho, gênero, moradia, bem –
estar individual, proteção à criança e ao adolescente e à alimentação.(segundo
o último relatório oficial do
Mudar esse quadro implica numa intensa mobilização e luta dos grupos
étnicos organizados, buscando-se alcançar representatividade política para
defesa de direitos de acesso aos bens sociais, voltados a produção de uma vida
digna e capaz de garantir através da educação, a participação no mundo do
trabalho. Assim, a defesa das cotas para as populações “negras e pardas” na
sociedade brasileira, constitui-se num avanço da luta de um grupo que
historicamente se viu excluído das oportunidades de acesso à qualidade de vida
em condições satisfatórias.
Para o antropólogo especialista
Na realidade é apenas um instrumento de ilusão, pois grafando o racismo
como crime, diminui-se a pressão pela real prática racista e segregadora da
estrutura social contemporânea, que em suas práticas nega e afasta as possibilidades
de ascensão social, cultural, econômica e intelectual dos “negros”.
O aspecto histórico da revolução industrial foi determinante para que o
destino dos “negros” brasileiros estivesse em rota de desamparo social e legal,
pois durante décadas viveu como animal e assim era tratado por seu dono, pois
era meio de produção braçal, trabalhando nas lavouras e engenhos de cana de
açúcar e de outras plantações de café, tabaco, cacau, algodão, era útil
enquanto era jovem, podia suportar a carga de trabalho diária que chegava há
vinte horas, mas quando ficava velho, não se podia vender, pois ninguém o
compraria, tampouco tinha o vigor de outrora para o trabalho, sendo estorvo a
ser mantido pois comia, ocupava espaço nas senzalas, precisava ser vigiado como
os demais escravos, até que foi difundida a aplicação das máquinas a vapor, que
eram imóveis, irracionais, não apresentavam sinais de cansaço, de desgosto ou
intenção de serem livres, não consumiam alimentos ou água com a freqüência dos
escravos, sendo o sonho de todo senhor de escravos.
A partir de então, os “negros” eram material descartável e que
precisavam urgentemente ser libertados, pois seriam os próprios consumidores
dos produtos industrializados, o que significariam lucros nunca antes
imaginados pela classe dominante.
Acostumados à vida de gado, os “negros” não possuíam qualquer
experiência da vida em liberdade, não conheciam os hábitos, nem as leis, muito
menos as estruturas que regiam a vida em sociedade naquela época, sendo
“jogados” a outro tipo de escravidão, a econômica.
Moravam em senzalas, galpões fechados que se assemelhavam a uma imensa
jaula, com pouca iluminação, pouca água e alimentação suficiente para mantê-los
vivos mas debilitados, caso pensassem
Essa mudança radical na realidade dos “negros”, lançou-os a perambular
pelas cidades, sem chances ou perspectivas de vida ou de adequação social,
agora tinham que trabalhar por seu sustento, pois o trabalho que lhes dava
algum dinheiro era só para ter como comprar os produtos agora vendidos. A mesma
sorte seguiam a necessidade de calçados, vestuário, remédios, ferramentas,
habitação enfim, eram homens livres escravos de suas necessidades básicas.
Não tendo onde morar, partiram para a ocupação dos morros e encostas que
cercavam as cidades, amontoados em casebres, sem qualquer condição de saúde ou
de dignidade, passaram a trabalhar por quase nada, vendiam seus corpos as
mulheres, os homens que não conseguiam trabalho eram empurrados ao banditismo e
à vadiagem, aumentando as cifras das doenças venéreas e das pestes
transmissíveis.
Assim nasceram as favelas, das ocupações desordenadas e da necessidade
de morar dos “negros” recém libertos que se multiplicaram rapidamente, pois a
única diversão que não lhe foi proibida era a relação sexual, que era
largamente praticada, gerando mais filhos da pobreza e do desespero.
Na verdade, tudo isso era previsível, mas controlável à época, pois a
criação de novos centros urbanos e o desenvolvimento dos já existentes criavam
uma população flutuante que apresentava equilíbrio entre as cidades, sendo os
grupos migratórios constantes, ora estando em determinada cidade, outrora em
cidade diversa.
Tal balanço populacional era aceitável, pois os índices de criminalidade
eram facilmente diminuídos com as incursões policiais que terminavam na
execução de alguns marginais por confronto com as autoridades.
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A GARANTIA DA DIGNIDADE HUMANA
A valorização
do ser humano na sociedade só é conquistada no momento em que os direitos são
assegurados, estando consagrados naturalmente a partir de sua inserção no grupo
social, e nesse caso, é essencial que toda pessoa disponha da liberdade,
autonomia, dignidade, para que possa ser reconhecido. Segundo Ataíde Júnior
(2006), no momento histórico vivenciado a partir da consolidação da ordem
capitalista no contexto mundial, os direitos do homem vêm sendo discutidos em
níveis mais profundos, decorrente de dois fatos marcantes.
O
primeiro refere-se ao distanciamento quanto ao acesso aos meios necessários à
garantia da sobrevivência, destacando-se a habitação, o acesso ao trabalho, à
saúde, educação e outros bens, fundamentais ao usufruto à vida com dignidade e
respeito ao próximo. O segundo, está relacionado à elevada concentração de
poder nas mãos de uma classe dominante, privilegiada, que submete o povo a um
processo de alienação, visando acima de tudo, impedir que ele tenha o devido
esclarecimento de seus direitos.
Essa
condição leva muitas vezes a prática da ilegalidade, representadas pela
exploração da força de trabalho, as prisões ilegais, a ausência de políticas
públicas que venham a garantir o direito ao acesso aos bens sociais, resultando
na formação de um quadro de miséria e dominação.
Grupos
ligados aos movimentos progressistas vem se organizando no intuito de se
contrapor a ordem desigual, exploradora e concentradora de renda, representados
por movimentos sociais, que reivindicam perante o Estado o cumprimento de seus
direitos previstos no texto constitucional, dentre estes é possível destacar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que por décadas resistem e
lutam em favor da reforma agrária.
No
contexto urbano, surgem grupos sociais organizados em defesa do direito de
morar, e paralelamente tem surgido outros em defesa de interesses específicos,
tais como as vítimas de barragens, os quilombolas, índios, GLBT (gays, bissexuais, lésbicas, transexuais), grupos estes que manifestam a diversidade, as
quais precisam ser respeitadas e ter garantido seus direitos no Estado
Democrático de Direitos, ora vivenciado.
Em meio a
esse quadro, é fundamental que se reflita sobre os direitos fundamentais, na
busca de construir os nexos necessários a compreensão dos fatores implicadores
que resultam no Estado, quando da aplicação e da valorização do ser humano.
Segundo
as considerações de Sarlet (1998), os direitos fundamentais vem trazer à
reflexão a necessidade de assegurar a dignidade humana, construindo um corpo de
valores morais e éticos que devem ser manifestos nas ações do Estado para
garantir a valorização do ser humano. Trata-se, portanto, de uma visão social e
política, capaz de assegurar a todos o usufruto pleno de qualidade de vida e
satisfação de bem estar numa sociedade em que a pluralidade é evidenciada.
É
importante considerar que a valorização da dignidade constitui-se como o núcleo
básico e informador de todo o ordenamento jurídico brasileiro, de modo que a
construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária, está manifestada a
partir de possibilidades de superação de problemas que historicamente vem se
desenhando no tecido social.
A redução
das desigualdades e a formação de uma sociedade sem preconceitos,
discriminações, estão asseguradas no texto constitucional de 1988, contribuindo
para que as pessoas venham requerer seus direitos diante do Estado.
Para
Mathias (2006), os direitos fundamentais são constituídos por regras e
princípios, positivados constitucionalmente, cujo enfoque não se limita aos
direitos humanos, mas abrange outras dimensões asseguradas para a vida humana
digna. Do ponto de vista formal, os direitos fundamentais são reconhecidos em
qualquer constituição ligados à essência humana, destacando-se a liberdade, a
dignidade, o respeito, e outros valores humanos.
A partir
da valorização dos direitos fundamentais no texto constitucional, o exercício
da cidadania passou a ser mais evidente na sociedade, buscando-se suprimir as
desigualdades impostas, especialmente aos segmentos menos favorecidos. No
momento em que o cidadão reivindica seus direitos, pressionando o Estado a
cumprir a norma, maiores possibilidades há de correção das situações desiguais.
É
relevante que o Estado viabilize a informação e a discussão sobre os direitos fundamentais,
para que o cidadão possa, a partir do reconhecimento e da compreensão dos
direitos, reivindicar e participar na construção de uma nova realidade social,
uma vez que o constitucionalismo brasileiro sempre
ostentou o princípio da isonomia nos períodos posteriores à escravidão.
Com o advento da República, a Constituição de 1891, previa que todos
seriam iguais perante a lei. A Constituição de 1934 manteve a igualdade perante
a lei, mas trouxe um novo elemento, dizendo que não haveria distinções por
motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe
social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.
A Constituição de 1946 reafirmou o
princípio da igualdade e proibiu-se a propaganda de preconceitos de raça ou classe.
A Constituição de 1964, orientada a partir dos princípios vigentes da Convenção
nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, a qual definiu a discriminação
como toda distinção, exclusão ou preferência, com base em “raça”, cor, sexo,
religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha o efeito
de anular a igualdade de oportunidade ou de tratamento em emprego ou profissão.
O conteúdo da Constituição Federal
de 5 de outubro de 1988, no que trata à igualdade inovou em seu preâmbulo,
destacando-a como valor supremo de uma sociedade pluralista e sem preconceitos,
e no campo dos direitos e garantias individuais, destaca-se o tema do art. 5º,
o qual se inicia com a previsão de que todos são iguais perante a lei e ainda
garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do
direito a igualdade, dentre outros.
O SISTEMA DE COTAS PARA ALUNOS “NEGROS” NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS
O aspecto da igualdade de todos
quanto ao acesso à educação em todos os níveis na sociedade brasileira,
delimita-se a partir da necessidade de se resgatar a dívida social que
historicamente o Estado teve em relação ao “negro”. Nesse caso, é essencial que
se avance no sentido de contemplar os dispositivos existentes no artigo 5º da
Constituição de 1988, que valoriza a isonomia, como também diante do artigo
206, I, que registra a igualdade de condições para acesso e permanência nas
escolas, e o artigo 208, V, que condiciona o acesso aos níveis mais elevados de
ensino, segundo a capacidade de cada um.
A análise às medidas legislativas que instituíram as cotas “raciais”,
mais precisamente a lei nº 4.151, de 04 de setembro de 2003, sancionada pela
então governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho, faz parte de
um conjunto de medidas que atualmente vêm sendo adotadas no país, denominadas
de Ações
Afirmativas, cujo objetivo principal é a promoção dos “afro
descendentes”, mediante ações de integração social visando a concretização do
princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos da discriminação
racial.
Essas ações ganharam destaque em nosso ambiente político-jurídico após a
III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
as Formas Conexas de Intolerância, realizada em agosto de 2001, em Durban,
África do Sul.
Em relação à lei nº 4.151/2003, é
possível observar alguns aspectos relativos à necessidade de superação do
quadro de desigualdade em que se encontram homens e mulheres “negros” na
sociedade brasileira, buscando-se facilitar o acesso desses sujeitos aos cursos
superiores, conforme é descrito abaixo:
Com
vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as
universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos
de graduação aos seguintes estudantes carentes:
I – oriundos da rede pública de ensino;
II –
negros;
III –
pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de
minorias étnicas. (LEI Nº 4.151, Art.1)
Observa-se que dentre as categorias de
sujeitos que vivenciam situações desiguais quanto ao acesso aos bens sociais, o
“negro” é uma delas e através de medidas compensatórias, o Estado vem avançando
no intuito de minimizar as situações relativas à escolarização que eles
apresentam, especialmente em relação à educação superior.
Percebe-se o quanto o regime de cotas
nas universidades públicas para estudantes “negros” vem contribuir para que
eles possam se qualificar para lutar em favor de melhorias quanto ao acesso ao
mundo do trabalho, contudo, é importante que eles consigam manter a permanência
na escola nos níveis anteriores ao superior, para que venham a usufruir desses
direitos com maior relevância.
O avanço da lei de cotas através das ações
do Estado possibilita as instituições públicas de ensino superior,
re-estruturarem suas demandas de vagas, em busca de garantir o atendimento em
níveis significativos, conforme é previsto em alguns de seus dispositivos.
Atendidos
os princípios e regras instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º e seu
parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei deverão as
universidades públicas estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes
carentes no percentual mínimo total de 45% (quarenta e cinco por cento),
distribuído da seguinte forma:
I – 20%
(vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;
II – 20%
(vinte por cento) para negros; e
III – 5%
(cinco por cento) para pessoas com deficiências, nos termos da legislação em
vigor e integrantes de minorias étnicas.
Parágrafo
Único – Após o prazo estabelecido no caput do presente artigo qualquer mudança
no percentual acima deverá ser submetida à apreciação do Poder Legislativo.
(LEI Nº 4. 151, Art.5)
Em outra leitura da realidade, a
lei das cotas vêm oficializar a discriminação racial no Brasil, ferindo o bom
senso e aviltar a própria imagem dos sujeitos pertencentes a uma “raça” que
tanto tem contribuído para a riqueza cultural do Brasil. Nesse caso, é importante
considerar os impactos sociais que ela expressa, decorrentes da presença dos
direitos fundamentais.
No entanto é possível compreender que
para se alcançar esse nível de visibilidade do “negro” quanto à luta por
direitos de acesso à educação superior, é preciso que se leve em conta o quanto
o processo de redemocratização efetivado em nosso país a partir da década de
1980, teve sucessivos impactos na organização dos grupos minoritários e de
algumas categorias sociais, que atualmente lutam pelos seus direitos numa
sociedade estruturada com níveis de desigualdades acentuados.
Para Comparato (2006), aos poucos o
Estado vem adotando uma política compensatória no intuito de resgatar a dívida
social com os sujeitos que historicamente de fato e de direito participaram na
construção do país, servindo como sustentáculo da base econômica e da formação
cultural do país.
Tais políticas compensatórias para
minorias, que nada mais são que políticas implementadas ou patrocinadas pelo
Estado com o objetivo de resgatar ou, no mínimo, superar as distorções sociais
profundas ou mesmo injustiças sociais que condenam minorias a baixos salários e
escassas oportunidades, resultando na situação de exclusão. Funcionam como uma
forma de compensar séculos de discriminação e preconceitos, abrindo
oportunidades para os integrantes dessas minorias alcançarem melhores níveis de
ascensão social.
As políticas compensatórias
começaram nos Estados Unidos e foram adotadas por outros países, como é o caso
do Brasil com as cotas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ e UENF,
a Austrália, onde os aborígines recebem terras como compensação pelos males
causados pela colonização as suas etnias. Há nos Estados Unidos, ainda,
pagamento de indenizações aos descendentes de índios por causa dos massacres
das tribos.
No entanto, a política
compensatória que mais causou discussão naquele país do Norte foi a política de
cotas, inicialmente adotada para garantir acesso de “negros”, hispânicos e
indígenas às universidades americanas, reservando-lhes um percentual das vagas,
bem como garantir que pudessem assumir postos de trabalho na iniciativa privada
e no funcionalismo público.
De modo que a reflexão sobre o tema
transcende a esfera jurídica, assumindo uma perspectiva multidisciplinar,
envolvendo a toda sociedade para que se possa construir valores e princípios
que estejam ligadas à valorização da dignidade humana, e que se concretize de
fato o direito de igualdade e de dignidade. Em vista dos avanços que a sociedade
brasileira vem experimentando, a partir do desenvolvimento da democracia é
possível situar o debate sobre as reservas de cotas para alunos “negros” nas
instituições públicas superiores como um autêntico avanço na construção de
políticas diferenciadas que venham contribuir para a superação da desigualdade
social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões sobre o regime de cotas
para estudantes “negros” nas instituições de ensino superior no Brasil,
comprovam o quanto avançamos em defesa dos direitos fundamentais que todo
cidadão deve ter para viver com dignidade. Historicamente a “raça negra”, mesmo
contribuindo significativamente na composição social no Brasil, esteve excluída
das oportunidades de construção de níveis de sobrevivência digna e de visibilidade
social em postos de comando.
A negação aos direitos de acesso aos
bens sociais, especialmente a educação, refletiu para que se construísse um
elevado contingente de analfabetos da “raça negra” no Brasil, sobrevivendo
precariamente nas favelas, nas periferias das grandes cidades, ou em terras
menos férteis e distantes nas regiões rurais.
A criação do regime de cotas para
“negros e pardos” nas instituições públicas de ensino superior, vem responder
as possibilidades de resgate da dívida social que o Brasil teve para com os
remanescentes “negros”, que contribuíram com seu trabalho para desenvolver a
economia do país.
Não são o bastante, pois a imensa ferida
social criada pelos mais favorecidos em detrimento dos menos favorecidos não
pode ser curada da noite para o dia, mas já é um começo bastante significativo
que reconhece que houve exploração e abuso demasiado do ser humano por outro
ser que se diz humano, mas que age como o pior dos predadores, caçando,
aprisionando e matando pelo mais vil dos motivos, a ganância material,
traduzida na sede eterna por poder e pela fome gigantesca por dinheiro e
riquezas materiais, passando por cima de tudo que possa ser chamado de
obstáculos aos seus objetivos torpes.
Reconhecer que houve abusos, crimes,
desumanidade, é sim um ponto de partida para rediscutirmos um racismo que
continua vivo, velado, entremeado por palavras bonitas e textos populistas,
politicamente corretos, mas prática e cotidianamente impraticados pelos que se
dizem “iguais”.
Defensores dos direitos humanos lutam,
escrevem, denunciam, nadam desesperadamente para não serem engolidos pelo mar
da indiferença social que se acostumou à banalização da exploração do homem
pelo homem, As sociedades frias, impassíveis diante de tantas novidades,
tecnológicas, esportivas, culturais, não se dão conta que o fim remonta ao
começo, pois é o mesmo homem que continua tomando, pilhando, predando,
escravizando, comercializando, matando para garantir seus interesses, estilo de
vida, conta bancária, status social, todos fios do imenso novelo chamado
humanidade, que apesar de emaranhada em seus próprios erros, está ligada por
uma linha chamada de vida, onde qualquer desequilíbrio fatalmente ocasionará
sofríveis conseqüências para todas as sociedades.
É preciso que despertemos de nossos
delírios filosóficos, políticos e surrealistas enquanto ainda podemos ajustar
as condutas e evitar que novas páginas da história do homem sejam escritas com
a rubra cor do sangue de nossos semelhantes.
Há muitas conquistas a serem buscadas,
mas nenhuma reside tão nobre quanto à democracia onde um homem poderá ser
homem, apesar do que for, basta que seja homem.
1- AMARAL, Rafaela Almeida do. A
Concretização do Direito Fundamental de Ação. Dissertação. UFPR: Curitiba,
2006.
2 - ATAÍDE JÚNIOR,
Wilson Rodrigues. Os Direitos Humanos e
a Questão Agrária no Brasil. A Situação do Sudeste do Pará. Brasília:
Editora UNB, 2006.
3 - BAÍA, Wilma C. A Cor
Ausente. São Paulo: Cortez, 2006.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Ministério da Justiça. Brasília,
1998.
4 - BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Censo de
2000. Brasília, 2000.
5 - CARRIL, Lourdes. Terras de Negros. São Paulo: Editora
Scipione, 2001.
6 - COMPARATO, Fábio Konder. As
novas funções judiciais no Estado Moderno. São Paulo: Malheiros, 2006.
7 - CUNHA, Luis A. A História
da Educação Superior no Brasil. Rio de Janeiro: Mediação, 2003.
8 - IANNI, Otávio. A Formação Social no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 2005.
9 - ROMANELLI, Otaíza. História
da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2004.
10 - SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1991.
11 - SARLET, Ingo
Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: livraria do
advogado, 2007.
* Advogado e Professor Universitário;
Belém-Pará-Brasil; Pós-Graduado em Direito Penal, Direito Processual Penal
(Universidade Estácio de Sá), Direito Civil, Direito Processual Civil
(Universidade Gama Filho), Doutorando em Ciencias Jurídicas e Sociais (UMSA)