Uma anlise do rano da escravido no Brasil.

Os contos O Caso da Vara e Pai Contra Me, de Machado de Assis,

luz da teoria do Direito Penal do Inimigo.

                                                                                                         

                                                                                   Renata Rodrigues[1]

 

 

 

RESUMO: Este estudo consiste em analisar a questo da escravido no Brasil nos scs.XIX ao XX com base nos contos machadianos O Caso da Vara e Pai Contra Me. O estudo contar com apontamentos da delinquncia e das frequentes fugas dos escravos descritos nesses respectivos contos, fazendo uma correlao com as leis penais vigentes quela poca. Prope um novo olhar sobre o tratamento desumano sofrido pelos escravos, correlacionando-o com a teoria do Direito penal do inimigo idealizada por Gnther Jakobs.

ABSTRACT: This study is to examine the issue of slavery in Brazil in the XX scs.XIX based on tales machadianos "The Case of the Stick" and "Father Against Mother." The study will include notes of crime and frequent escapes of slaves described in those respective stories, making a correlation with the criminal laws in force at that time. Proposes a new look at the inhumane treatment suffered by slaves, correlating it with the theory of the criminal law of the enemy designed by Gnther Jakobs.

 

 

INTRODUO

 

            O presente estudo prope basicamente analisar os contos machadianos: O Caso da Vara e Pai Contra Me, dentro do contexto da escravido que assolava o Brasil em meados do sc. XIX e incio do sc.XX, dando nfase questo da delinquncia e das frequentes fugas dos escravos.

            Dentro do contexto da escravido, pretende demonstrar as penas as quais os escravos estavam sujeitos com fundamentao no ordenamento jurdico vigente a poca, expondo as verdadeiras razes pelas quais os escravos eram tidos como inimigos do sistema social e penal institudo.

            Para o desenvolvimento deste raciocnio, empregou-se de um mtodo indutivo, correlacionando a teoria do Direito Penal do Inimigo, idealizada por Gunther Jakobs desde 1985, cuja essncia traz a figura de um inimigo como algum que no se admite ingressar no Estado, no podendo ter o tratamento destinado ao cidado, nem beneficiar-se dos conceitos de pessoa, com o tratamento desumano sofrido pelos escravos e justificados em leis cruis, afastando-os da condio de pessoa humana.

 

I - A ESCRAVIDO NOS CONTOS O CASO DA VARA E PAI CONTRA ME

 

            O Caso da Vara um dos contos mais famosos do escritor Machado de Assis[2] publicado no jornal Gazeta de Notcias em 1891 e reeditado em 1899 no livro Pginas Recolhidas.

            Narrado em terceira pessoa, Machado faz uso de sua tpica ironia para evidenciar severas crticas sociedade da poca e da sordidez da escravido e suas mazelas morais. O conto foi publicado pela primeira vez no ano de 1891 em momento de grande relevncia histrica do perodo imperial brasileiro, ou seja, trs anos aps a abolio da escravatura no Brasil, e vivenciado pelo clebre escritor.

         No conto O Caso da Vara, Machado narra a histria de Damio que foge de um seminrio e temendo voltar para casa e enfrentar as iras do pai que o devolveria ao seminrio, busca refgio na casa de Sinh Rita a qual promete ajud-lo. Ela possui algumas escravas, destacando-se no enredo, Lucrcia, que, maltratada por sua senhora, consegue as atenes de um seminarista sem vocao, que, em pensamento, desejava apadrinh-la Porm, no momento mais decisivo do enredo quando a Sinh Rita se preparava para maltratar a escrava Lucrcia, ela pede a Damio que lhe entregasse a vara, e, na dvida em salvar a escrava, qual implorava-lhe  por tudo de mais sagrado que no o fizesse, ele entrega a vara Sinh Rita.

         O conto Pai Contra Me publicado em 1906, em Relquias da Casa Velha, se encontra numa fase madura do autor, marcada pelos traos do Realismo literrio.

         Machado, em o Pai contra Me, narra a histria de Cndido Neves, um caador de escravos fugitivos, que se casa com a jovem Clara, menina rfo e criada pela tia.O sonho do casal ter filhos, porm advertido pela tia de Clara que os mesmos no teriam condies de sustentar uma criana.Posteriormente, Clara engravida e portanto, surge o conflito do conto, uma vez que Cndido Neves passa por extrema dificuldade financeira, e sem saber o que fazer para sustentar seu filho, decide desesperadamente em deix-lo na Roda dos Enjeitados. No percurso crucial que faz com o filho at a roda, ele encontra-se com uma escrava fugitiva e esta renderia cem contos de ris pela captura. Ento ele entrega o filho a um farmacutico e sai em perseguio escrava, qual desesperadamente luta por sua liberdade. Ela, uma vez que est grvida, implora ao  Cndido Neves que no a entregasse. E aps ser conduzida sob muita luta e violncia por parte de Cndido Neves, a escrava entregada ao seu senhor, ocorrendo desta forma o aborto da criana. Desse modo, Cndido Neves recebe os devidos contos de ris pela captura da escrava e volta desesperado ao encontro de seu filho. 

         Assim, como O Caso da Vara, o conto Pai Contra Me possui como elemento principal de sua histria a problemtica da escravido, tratada de uma maneira mais impressionante e agressiva, diferente das demais obras machadianas.

         Em uma primeira anlise, nota-se que nos dois contos os personagens principais do conflito tratam-se de um homem branco livre e de uma negra escrava, levando o leitor, atravs da narrativa a desmascarar os horrores da escravido e o tratamento desumano sofrido pelos negros.

         Adentrando-se no universo jurdico penal, os contos O Caso da Vara e Pai Contra Me apresentam riqussimas informaes sobre um perodo da histria do Brasil marcado por acontecimentos de suma relevncia e presena de leis severas contra os escravos. mister salientar que a poca da narrativa desses dois contos vigorava-se no Brasil o Cdigo Criminal de 1830, sancionado poucos meses antes da abdicao de D.Pedro I, na data de 16 de dezembro de 1830. Esse cdigo vigorou de 1831 at 1891, quando fora substitudo pelo Cdigo Penal dos Estados Unidos do Brasil (Decretos ns. 847, de 11 de outubro de 1890, e 1.127, de 6 de dezembro de 1890).

         A posteriori, para dar continuidade s propostas do Cdigo Criminal do Imprio, fora publicado em 29 de novembro de 1832 o Cdigo de Processo Criminal, em carter provisrio para fins de administrao da justia civil.

        

II - DA DELIQUNCIA E DAS PENAS DOS ESCRAVOS

 

         Os dois contos machadianos, objeto deste estudo, retratam com riquezas de detalhes a viso de delinquncia dos escravos e da maneira como eram tratados em meados do sc. XIX principalmente os que fugiam inconformados devido as condies humanas. Machado apresenta ao leitor os aparelhos que constituam essa monstruosa degradao humana, seno vejamos:

 

O ferro ao pescoo era aplicado aos escravos fujes. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa tambm direita ou esquerda, at ao alto da cabea e fechada atrs com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. (...)

 

         Segundo Soares (2007) tais aparelhos eram suplcios que estigmatizavam os escravos delinquentes, tais como o uso de ferro ao pescoo (gargalheira) e ferro ao p(correntes)[3] ento consagrados no Cdigo Criminal de 1830, que, dentre outras providncias, admitia-se a pena de morte[4] aos crimes de homicdio, previsto no art.192, e no de Insurreio, art., 113.

         O conto O Caso da Vara, ironiza a delinquncia dos escravos e suas fugas, esta, de duas maneiras distintas: Uma era do jovem seminarista, Damio, que fugira do seminrio e temendo enfrentar a ira do pai se abriga na casa da viva Sinh Rita, tornando, por assim dizer, escravo dela, se acovardado e rendendo-se s ordens delas para no voltar ao seminrio. A outra da escrava Lucrcia, que, no cumprindo com suas obrigaes de escrava, submetida aos castigos de Sinh Rita, e, inconformada com a situao foge de sua senhora. Porm, ela surpreendida com a entrega da vara por Damio Sinh Rita.

         Neste conto, Machado utiliza da vara como punio aos escravos que desobedeciam as ordens de seus senhores, tendo arraigado nela a figura dos aoites, prevista como pena no primeiro cdigo penal brasileiro. Vejamos:

 

 (...) Uma destas, estrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinh Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moo. Sinh Rita pegou de uma vara que estava ao p da marquesa, e ameaou-a:

— Lucrcia, olha a vara! A pequena abaixou a cabea, aparando o golpe, mas o golpe no veio. Era uma advertncia; se noitinha a tarefa no estivesse pronta, Lucrcia receberia o castigo do costume. (...).

                

As questes inerentes fuga de escravos e sua insatisfao com o regime imposto eram de suma importncia no Brasil dos scs. XIX ao XX, motivo pelo qual foram consagradas no Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, no captulo concernente aos crimes contra a segurana interna do Imprio e da tranquilidade pblica, caracterizando a Insurreio nos art.113 ao 115 como crime punvel morte, gals perptuas e  aoites.

Machado em O Pai Contra a Me, evidencia esse fato:

 

H meio sculo, os escravos fugiam com freqncia. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravido. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia algum de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono no era mau; alm disso, o sentimento da propriedade moderava a ao, porque dinheiro tambm di. A fuga repetia-se, entretanto.          

 

         O Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, no captulo Das Penas dispe em seu art.33 e seguintes sobre a qualidade das penas e da maneira de imp-las e cumpri-las, que, dentre outras disposies, prev a aplicao da pena de morte, de gals perptua[5] e de priso com trabalhos forados.

         Para No Azevedo os textos dessas leis lembravam os draconianos, imitando o que ocorria na Antiga Roma, onde o senhor tinha sobre o escravo o jus vitae necisque - o direito de vida e de morte.

O Cdigo Criminal do Imprio do Brasil foi inovador em vrios aspectos, entre eles a excluso da pena capital para crimes polticos. Nele fixava um esboo de individualizao da pena e previa a existncia de atenuantes e agravantes, estabelecia julgamento especial para menores de quatorze anos e polemizava quanto pena aplicada aos escravos prevista no artigo 60[6].

            Entende Soares (2007) que o cdigo criminal no fora to inovador para os escravos vez que fora mantido os suplcios corporais, consoante a punio e crimes que cometiam, salientando o seguinte:

 

(...) Segundo as classes dominantes e seus legisladores, a punio fsica jamais poderia ser abolida, pois os negros cativos, alm de no serem cidados de espcie alguma, eram indivduos rudes, incultose sem condies de condies de conhecer a  dimenso das leis sociais, s se submetendo a elas devido ao temor de castigos fsicos. Portanto os aoites continuavam a ser aplicado aos escravos delinqentes, inclusive publicamente, para que a punio tivesse um efeito exemplar e preventivo sobre todos os cativos, mantendo-se assim, at os anos de 1840, o grotesco espetculo do pelourinho do Campo de Santana[7].

 

Insta esclarecer que a Constituio de 1824 em seu art.179, inciso XIX, aboliu a pena de aoites por consider-la cruel sendo assim invivel juridicamente a aplicao no Cdigo Criminal do Imprio dessa pena, constituindo assim afronta constituio.

A posteriori  fora publicada a Lei n 4 de 10 de junho de 1835, instituindo a pena de morte aos escravos que matarem, ferirem ou cometerem quaisquer ofensas aos seus senhores, e, quando tais ferimentos e ofensas fsicas fossem leves, determinava a pena de aoites na proporo das circunstncias mais ou menos agravantes.

Essa lei foi, por assim dizer, um precedente histrico no Brasil da Teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada pelo doutrinador alemo Gunther Jakobs desde 1985, sustentada pela seguinte frase: os inimigos no so efetivamente pessoas, portando no podem ser tratadas como tal, vez que havia dois direitos, um do cidado e outro do inimigo, no caso em tela: dos escravos.

         Seguindo o raciocnio de Jakobs, e aplicando a figura do escravo nesta concepo terica, levamos a crer que o papel do escravo era seno de um inimigo, vez que a sociedade brasileira do sc. XIX era dividida em duas classes: pessoas e no-pessoas, retirando do escravo qualquer direito inerente pessoa humana.

 

III - DO HAITIANISMO E A VISO DO ESCRAVO COMO INIMIGO

        

         O Brasil, do perodo narrado nos livros Pai Contra Me e O Caso da Vara absorvia os acontecimentos libertrios pelo mundo e preocupava-se com sua posio poltica naquele contexto social.

         Um dos fatores de grande repercusso mundial e gerador de vrias mudanas sociais,foram os ideais da Revoluo Francesa de 14 de julho de 1789, exercendo,pois, grande influncia sobre a liberdade e o respeito dos direitos humanos em todo o mundo.Nesse perodo, os assuntos que envolviam as colnias eram debatidos e problematizados.

         No mesmo ano da ecloso da Revoluo Francesa, fora divulgada a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, definindo os direitos inerentes pessoa humana.

         Algumas instituies autnomas, como a Amis des Noirs[8], promoviam campanhas em defesa da abolio e do direito dos negros participao poltica. No contexto desses debates, os Estados Gerais de Paris concederam o direito de voto aos homens de cor livres das ndias Ocidentais. Em So Domingos, entretanto, os proprietrios brancos no reconheceram a deciso e iniciaram um conflito aberto contra os mulatos (KLEIN, 1987, p. 106).

         A rebelio no Haiti aconteceu em 1791, dois anos depois da Revoluo Francesa. Nessa ocasio a Colnia possua um nmero de negros que superava em dez vezes o nmero de franceses e mestios. Havia simplesmente meio milho de escravos no Haiti, que nesse momento era o principal mercado individual para o trfico negreiro europeu. Esta rebelio durou doze anos, resultando ao final com a abolio da escravatura.

         Segundo Stuart Schwartz, em Segredos internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial no perodo da Regncia (1831-40), o termo 'haitianismo' foi usado como um epteto contra jornais que supostamente representavam o interesse da populao de cor livre e abordavam persistentemente a questo racial.

         A Revoluo Haitiana (1791-1804)[9] tambm teve reflexos no Brasil, quando, em 1835 os escravos africanos organizaram uma rebelio na Bahia tambm com o intuito de expulsar os brancos e tomar o poder: a Revolta dos Mals. Nenhum dos inquritos judiciais contra as rebelies escravas na Bahia apontava a inspirao haitiana, mas no h dvidas sobre sua importncia na luta contra a escravido colonial.

         Em 04 de setembro de 1850 fora instituda a Lei Eusbio de Queirs proibindo o trfico negreiro, impulsionada pelo grande fluxo de escravos e pelo medo de uma revolta como a haitiana.

         O historiador John Hope Franklin escreveu, em Da escravido liberdade, que os americanos ficaram horrorizados diante das notcias do que acontecia no Haiti. A partir de 1791, muitos se preocuparam mais com os acontecimentos no Haiti do que com a luta de vida ou morte que se desenvolvia entre Frana e Inglaterra.

         Para os escravos das Amricas, a revolta negra do Haiti representou o modelo de um movimento de libertao vitorioso. No Haiti, os escravos haviam conquistado a independncia do pas e a abolio da escravido, enfrentando, durante o conflito, invases da Inglaterra, da Frana e dos exrcitos coloniais. Em todas as sociedades americanas, o exemplo haitiano atemorizou os brancos, enquanto inspirava os escravos e os libertos negros e mulatos (KLEIN, 1987, p. 108).

         Consoante Marcelo Ezequiel Correa dos Santos no Brasil, talvez mais do que em qualquer outra sociedade escravista, o medo do Haiti no evocava somente levantes escravos generalizados, mas fundamentalmente anarquia, desordem, caos e ruptura da ordem social ps-colonial, tambm em termos de ideologias raciais entre a populao livre.

         Para Severiano, os escravos eram naturalmente inimigos dos brancos, pela prpria condio de escravos a qual estavam submetidos. A instituio da escravido inclua a prtica de maus tratos e de castigos que potencializavam o dio que os escravos sentiam em relao aos seus senhores, estimulando um sentimento de vingana.

         Segundo Bonifcio, o aumento do nmero de escravos configurava um problema poltico, uma ameaa ao Estado:

 

 Se o mal est feito, no o aumentemos senhores, multiplicando cada vez mais o nmero de nossos inimigos domsticos, desses vis escravos que nada tm que perder antes tudo que esperar de alguma revoluo, como o de So Domingos ouviu, pois, torno a dizer, os gemidos de cara ptria que implora socorro e patrocnio (Silva, 1988, p. 75).

 

         A noo de inimigo que os escravos representavam em meados dos scs. XIX e XX e sobremaneira retratado nos contos Pai Contra Me e O Caso da Vara, possuem correlao com a teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada por Gnther Jakobs[10] desde 1985, vez que era notrio o desrespeito aos direitos fundamentais, outrora estabelecido na Declarao Internacional de Direitos Humanos, bem como dos princpios do Estado de Direito em desfavor dos negros e escravos os quais no eram considerados cidados de direitos e sequer eram considerados pessoas.

         Para Jakobs (2003) havia uma distino entre indivduos sociais que deveriam ser tratado como cidados daqueles que era tido como inimigo do Estado, ou seja, dividia-se a sociedade em duas classes diferentes de seres humanos: as pessoas e as no pessoas, ressaltando que cada uma delas merecia tratamento jurdico diferente, afirmando:

 

O Estado pode proceder de dois modos com os delinquentes: pode ver neles pessoas que delinqem, pessoas que cometeram um erro, ou indivduos aos que se deve impedir mediante coao que destruam o ordenamento jurdico. Ambas perspectivas tm, em determinados mbitos, seu lugar legtimo, o que significa, ao mesmo tempo, que tambm podem ser usadas em um lugar equivocado.[...]Quem no presta uma segurana cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, no s pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado no deve trat-lo como pessoa, j que do contrrio vulneraria o direito segurana das demais pessoas.Portanto, seria completamente errneo demonizar aquilo que aqui se denomina Direito penal do inimigo; com isto no se pode resolver o problema de como tratar os indivduos que no permitem sua incluso em uma constituio cidad. [11]

                                                                              

 

         No caso em tela, o escravo, outrora inimigo do direito penal, era punido simplesmente por ser escravo e no simplesmente pelo fato que o mesmo praticava, tendo leis diferentes dos demais cidados.

         Nesse sentido, Machado em O Pai Contra Me, ao narrar os aparelhos que os escravos eram submetidos, principalmente a mscara de folha-de-flandres, justifica os horrores como forma de manter a ordem social: Era grotesca tal mscara, mas a ordem social humana nem sempre se alcana sem o grotesco, e alguma vez o cruel

         Para Roberto Lyra, (...) os fundamentos econmicos do Estado legitimavam o poder correcional do senhor em face do escravo e ningum podia fiscalizar a execuo nos sagrados limites dos feudos. Gritos e depois gemidos cansados eram a rotina. O castigo s parava para evitar que o escravo morresse, desfalcando o patrimnio anticristo.

         Como mesmo diz o jurista Luis Flvio Gomes:

 

Os velhos inimigos do sistema penal e do estado de polcia (os pobres, marginalizados etc.) constituem sempre um exrcito de reserva: so eles os encarcerados. Nunca haviam cumprido nenhuma funo econmica (no so consumidores, no so empregadores, no so geradores de impostos). Mas isso tudo agora est ganhando nova dimenso. A presena massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construo de mais presdios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, d empregos, estabiliza o ndice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma funo econmica: a presena deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc[12]

 

          O professor e grande jurista argentino Ral Eugnio Zaffaroni, quando de passagem pelo Rio de Janeiro em meados do ano de 2009 concedeu entrevista a Revista brasileira Consultor Jurdico, que, dentre vrias perguntas prontamente respondidas pela autoridade do direito penal atual, questionou quanto ao direito penal do inimigo, sobretudo na questo da escolha do inimigo dizendo:

 

Cria-se uma paranoia social, e estimula-se uma vingana que no tem proporo com o que acontece na realidade da sociedade. Atravs da histria, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sfilis, prostitutas, alcolatras, dependentes qumicos, indgenas, negros, judeus, religiosos, ateus. Agora, so os delinquentes comuns, porque no temos outro grupo que seja um bom candidato. Esse fenmeno decorre do fato de os polticos estarem presos mdia. Seja por oportunismo ou por medo, eles adotam o discurso nico da mdia que o da vingana, sem perceber que isso enfraquece o prprio poder[13].

        

        

         Em fins do sc.XIX e incio do sc.XX, os escravos eram considerados inimigos do sistema, prevalecia a ideia do perigo e da ameaa negra associada a tpicos morais, sociais e econmicos.

 

CONSIDERAES FINAIS

      

       Neste presente estudo foi possvel analisar os dois contos Machadianos Pai Contra Me e O Caso da Vara sob o olhar crtico da escravido vigente no Brasil na poca da narrativa dos respectivos enredos.

       A priori, o estudo contou com apresentao dos contos, com nfase na questo da escravido vivenciada pelos personagens e tambm pelo prprio autor Machado de Assis, no dispensando aqui o leitor de uma leitura prazerosa da ntegra desses contos, uma vez que h outras questes sociais e morais no estendidas neste estudo.

            Em seguida, foi analisado o contexto histrico da narrativa dos contos machadianos, intercalando o papel do escravo delinquente e suas frequentes fugas com a situao poltica e social daquela poca, mencionando o Cdigo Criminal do Imprio do Brasil e o emprego de penas desproporcionais aos escravos os quais os diferenciavam dos demais cidados dignos de direitos.

       Tambm foram mencionados neste estudo fatos histricos relevantes como a Revoluo Francesa, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que correram o mundo influenciando outros movimentos sociais como a Revoluo do Haiti, abordada tambm neste estudo. O Haitianismo difundiu o temor de rebelio nas demais colnias, vez que em doze anos de revoluo conseguiu xito com a abolio da  escravatura no Haiti.

       Por fim e no decorrer deste estudo, procurou-se demonstrar o papel de inimigo do escravo em relao sociedade brasileira dos scs.XIX XX, correlacionado aquela ausncia de direitos fundamentais e de desrespeito Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado com a teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada por Gnther Jakobs, sustentada por uma legitimao do Estado da preservao do cidado, dividindo-o em duas categorias distintas, os de no cidados e de no pessoas, esta ltima classificada como inimigo, bem semelhante aos escravos e negros daquele perodo imperial.

           

REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS

                                  

 

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BUSATO, Paulo Csar. Reflexes sobre o Sistema Penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

 

CANCIO MELI, Manuel e JAKOBS, Gnther. Derecho penal del enemigo.Madrid: Civitas Ediciones, 2003.

 

COSTA, Joo Severiano Maciel. Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condies com que esta abolio se deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braos que ela pode ocasionar. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, Ministrio da Justia (1 edio: 1821), 1988.

 

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirmide e o trapzio. So Paulo: 2 ed. Nacional, 1976.

 

KLEIN, Herbert S. A escravido africana: Amrica Latina e Caribe. So Paulo: Brasiliense, 1987.

 

MARCELO. Ezequiel Correa dos Santos. Um jacobino na Corte imperial. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

 

MUNZ CONDE, Francisco e BUSATO, Paulo Csar. Crtica ao Direito Penal do inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

 

SILVA, Jos Bonifcio de Andrada. Representao Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil sobre a escravatura. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, Ministrio da Justia (1 edio: 1825), 1988.

 

SOARES, Luis Carlos. O Povo de CAM na capital do Brasil: A Escravido Urbana no Rio de Janeiro do sc.XIX.  Rio de Janeiro: 7 letras, 2007.

 

ZAFFARONI, Eugnio Raul. Manual de Derecho Penal, 2ed. Buenos Aires: Ediar, 2011.

 



[1] Advogada;  Bel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais.; Ps Graduada em Cincias Criminais pela Universidade Cndido Mendes; aluna especial do Mestrado em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros; aluna regular do curso de Doutorado em Direito Penal da Universidad de Buenos Aires.

 

[2] Citado no livro Gnio, de Harold Bloom, renomado crtico da atualidade, entre os cem maiores escritores mundiais. Segundo Bloom, Machado rene os pr-requisitos da genialidade. Possui exuberncia, conciso e uma viso irnica mpar do mundo.

[3] Vide: SOARES, Luis Carlos, O Povo de CAM na capital do Brasil: A Escravido Urbana no Rio de Janeiro do sc.XIX, 2007, p.230 e 231.

[4] A pena de morte disposta nos art. 38 ao 43 do Cdigo Criminal do Imprio  determinava que a mesma fosse dada na forca depois de ter  sido irrevogvel a sentena, devendo ser executada no dia seguinte ao da intimao. Previa ainda que o ru, com vestido ordinrio, e preso, fosse conduzido pelas ruas mais pblicas at a forca, ato este acompanhado de juiz criminal do lugar onde estivesse, com o seu escrivo, e da fora militar que se requisitasse. E para iniciar os atos, o porteiro lia em voz alta a sentena a ser executada,o juiz presidia a execuo e o escrivo certificava o ato.Os corpos dos enforcados eram entregues a seus parentes, ou amigos,se os pedirem aos juzes que presidirem execuo, no podendo ser enterrados com pompa, sob pena de priso por um ms a um ano.A mulher grvida, em regra, no estava sujeita a forca, somente quando merecesse e aps quarenta dias depois do parto.  

 

[5]A pena de gals, disposta no art. 44 do Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, sujeitava os rus a andarem com calceta no p, e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos pblicos da provncia, onde tiver sido cometido o delito, disposio do Governo.

[6] Cdigo Criminal, artigo 60, verbis: Se o ro fr escravo, e incorrer em pena, que no seja a capital, ou de gals, ser condemnado na de aoutes, e depois de os soffrer, ser entregue a seu senhor, que se obrigar a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o juiz designar. O numero de aoutes ser fixado na sentena; e o escravo no poder levar por dia mais de cincoenta  - artigo posteriormente revogado pela Lei 3.310 de 1886.BRASIL. Cdigo Criminal do Imprio. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm> acesso em 13 jun. 2012.

[7] Vide SOARES, Luis Carlos:O Povo de CAM na capital do Brasil: A Escravido Urbana no Rio de Janeiro do sc.XIX, 2007, p.230

[8] Sociedade dos Amigos de Negros, era um grupo de homens e mulheres franceses, em sua maioria brancos, que eram abolicionistas (adversrios do negro a escravido e o trfico de escravos Africanos ). A Sociedade foi criada em Paris em 1788, e permaneceu em existncia at 1793. Foi conduzido por Jacques-Pierre Brissot,com conselhos de Thomas Clarkson , que liderou o movimento abolicionista no Reino da Gr-Bretanha . No incio de 1789, que tinha 141 membros. Durante o perodo de cinco anos de sua existncia, publicou anti-escravido literatura e dirigiu as suas preocupaes em um nvel poltico substancial na Assemblia Nacional da Frana . Ironicamente, no entanto, qualquer real, mitigao prtica legislativa da situao dos escravos iria surgir apenas aps o desaparecimento da Sociedade em 1793. Em fevereiro de 1794, a Assembleia Nacional legislou o decreto da emancipao universal, o que efetivamente libertado todos os escravos coloniais.

[9] Trata-se da primeira revoluo de negros do perodo escravocrata bem sucedida em todo mundo. Em 1791 trs anos antes dos franceses abolirem a escravido em suas colnias, Toussaint L'Ouverture, um ex- escravo, lidera uma rebelio que mais tarde iria abolir a escravatura e expulsar todos os brancos da ilha. A luta dos haitianos durou cerca de 12 anos. Com medo que o exemplo dos haitianos se espalhasse pelas outras colnias que tambm exploravam o trabalho escravo dos negros, a Espanha e a Inglaterra se uniram aos franceses para tentar conter a rebelio no Haiti.Em 1801 Toussaint consegue vencer as tropas inglesas e espanholas. Aps a sua priso e morte os generais Jacques Dessalines e Alexandre Ption prosseguem a luta expulsando os franceses em 1803.Assim o Haiti torna-se a primeira repblica de negros no mundo e a segunda nao a se tornar independente na Amrica (a primeira foi os Estados Unidos).

                                                                                                               

[10] Catedrtico emrito de Direito Penal e Filosofia do Direito pela Universidade de Bonn, Alemanha.

[11] JAKOBS, Gnther.Derecho Penal del enemigo. Trad.Manuel Cancio Meli. Madrid: Civitas, 2003

[12] GOMES,Luis Flvio. Direito Penal do Inimigo(ou Inimigos do Direito Penal) Revista Jurdica Unicoc, disponvel em <www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf>

Acesso em 03set 2012.

[13] ITO, Marina. Funo do Direito Penal limitar o poder punitivo.Consultor Jurdico.

Disponvel em http://www.conjur.com.br/2009-jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentinoER , acesso em 03 set2012.