A ARMADILHA SOCIAL

 

 

João Franco Rocha

 

 

Rousseau dizia que o cristão não encarna na sociedade o papel do indivíduo ideal, pois não se submete a adoção de soluções que objetivem apenas contornar problemas em questões que se apresentam na administração da coisa pública. O cristão não é capaz, por exemplo, de realizar escolhas que imponham sacrifícios de vastas camadas da população em nome do bem estar da economia. Para o cristão, sua concepção de amor e caridade o conduz prioritariamente para o bem estar do próximo, o que o leva a sempre pensar em termos de equilíbrio e de justiça.

 

Aléxis de Toqueville entendeu que o cidadão procura e situa o seu próprio bem-estar através do bem-estar da sua comunidade. A percepção aqui é a de que o homem se sentirá bem e em equilíbrio se os demais também crescerem em respeito e dignidade com ele. 

 

Por sua vez o indivíduo, em razão do peculiar desencanto que toma conta da sociedade, não acredita mais na existência de causas que tenham sido propostas em atenção aos interesses comuns ou respeitando os princípios de uma sociedade justa. O indivíduo entendido profeticamente por Toqueville, é o homem que considera ter o poder público uma primordial função: a de garantir que cada um possa seguir o seu caminho, se a sua segurança física e propriedades forem protegidas pelo Estado.

 

Na pós-modernidade não construímos projetos coletivos. Tudo o que temos é à busca do atendimento aos desejos particulares, gerando a tirania do prazer.

 

Muito embora a nossa sociedade já desenhe uns primeiros passos realistas na busca do respeito que lhe é devido, resta muito a ser feito. A letra da administração pública ainda não produziu uma política para a infância, outra para a família, uma definição de atenção para o idoso. Muitas as promessas nas campanhas eleitorais para solução da questão campesina e um perigoso imobilismo que só agrava a questão, enquanto os chamados sem-terra residem em acampamentos ao longo das rodovias. Não desenvolvemos uma efetiva política de segurança biológica. Em suma, não vislumbramos uma proposta organizada de forma coerente, abarcando a vida da coletividade.

 

 No jogo de cena dirigido pelo Estado enganamos a comunidade com programas assistencialistas. Separamos algo como alguns milhares de vagas nos cursos superiores para alunos que o Estado já qualifica como desiguais. E que chegou a esse qualificativo por culpa do próprio poder público que chamou a tarefa de fornecer ensino grátis e de qualidade às crianças e aos adolescentes. Agora, muitos cursos superiores privados, de baixíssima qualidade e já reprovados pelo Ministério de Educação, conforme denunciam os representantes estudantis da União Nacional dos Estudantes (UNE), abriram vagas a candidatos em um sistema de cotas. O mesmo governo que desqualifica esses cursos troca essas vagas para os alunos por incentivos fiscais. E é esse mesmo governo que, por não ter sido capaz de oferecer escolas de qualidade, o que é de sua responsabilidade, agora quer resolver a questão estabelecendo as chamadas vagas universitárias por cotas para os alunos de seus colégios. 

 

O poder público ao invés de beneficiar o setor privado deveria estar canalizando todos os seus investimentos e recursos para a rede pública, evitando o sucateamento das universidades federais e estaduais. Os seus pretensos beneficiários vão apenas reforçar o estigma social que já os acompanha, enquanto essas escolas superiores recebem incentivos fiscais.

 

 Estamos longe de uma visão voltada à construção de uma sociedade justa, até porque em razão de uma estrutura econômica cruel, adotamos uma visão de atendimento prioritário a satisfação das ambições pessoais. Quantos estudantes são obrigados a recorrer a operações bancárias para custear o seu curso? Quantos são constrangidos a mendigar por um avalista em tais operações enquanto faltam vagas nas escolas públicas?

 

Acrescentemos o fato de que no estágio atual do conhecimento científico, um conhecimento que é ao mesmo tempo cognitivo e manipulador, cada homem tem a obrigação de repensar a noção que desenhamos sobre a pessoa humana.

 

Nas últimas duas décadas quase não conhecíamos dúvidas. Os fatos eram claros: uma pessoa morria quando o coração parava.  A vida surgia com a fecundação, a nidação ou em último caso quando o recém nascido deixava o ventre materno. Hoje as certezas são raras e nada mais é fácil no processo decisório. Novas questões foram postas.

 

Um homem em profundo e prolongado coma ainda é uma pessoa humana ou um ser vegetativo?  Como indagou Edgar Morin: “A criança existe como pessoa no ovo, no estado de blástula, no momento da formação do embrião, no terceiro mês, no sexto mês, ocasião em que está completo o sistema nervoso, ou no nascimento?” A única certeza é a existência de detalhes que escapam à nossa compreensão. O embrião não é uma pessoa humana, mas o é, potencialmente. A potencialidade é uma realidade, portanto, o embrião é potencialmente uma pessoa, sem sê-lo. Pergunta-se hoje se o homem em coma prolongado ainda é uma pessoa, ou estamos frente a um organismo, embora mantenha a forma da pessoa humana? Nesse momento é desenhada uma nova rota à compreensão da questão, pois existe a possibilidade de viver, enquanto ser humano, e de sobreviver biologicamente apenas como um organismo.

 

  Com a sua base estabelecida por um projeto econômico neoliberal a sociedade é construída em um sistema onde é prevalente a propriedade privada dos meios de produção e o trabalho é percebido apenas como uma mercadoria, cujo preço é o salário. O trabalhador, antigo artesão, agora necessita oferecer a sua capacidade laboral empregando-se onde encontra uma vaga. Já não desenvolve mais as suas potencialidades, tendências ou aperfeiçoa os seus dotes pessoais, em atividades criadoras de conformidade com suas inclinações pessoais. É literalmente treinado para executar tarefas que o mercado no momento exige. No desenrolar das transformações a economia de ganhos que sucedeu a economia das necessidades agora é suplantada pela economia da satisfação que é, por natureza, individualista.

 

A economia neoliberal, hoje prevalente, se impõe como fonte da lei, da moral e da cultura com o objetivo de fazer respeitar as suas teses. A ordem legal vigente não é outra coisa – dentro do sistema - senão a legitimação das relações de poder que existem entre os diferentes grupos políticos na comunidade juridicamente constituída. Essa ordem é o instrumento para a preservação do sistema. Trata-se do astucioso desenvolver de uma trama onde os que não contribuem ordenadamente para o sistema, ou se tornam débeis ou doentes com o passar dos anos de trabalho exaustivo para a manutenção do sistema, são punidos. Isso porque é considerado o fato de que com o passar dos anos as empresas serão oneradas por necessitarem de maior auxílio. Ao final de sua vida útil os trabalhadores passam a ser vistos como um estorvo, um verdadeiro inimigo a ser eliminado.

 

O homem comum, sem se aperceber, torna-se defensor do instrumento que o explora.  O ser humano, na atual escala de valores, é definido de conformidade com a sua utilidade e rentabilidade. Nesse cenário temos mais leis que justiça e mais atos de culto do que fé.

 

No entanto, é a fé que dá ao homem aquilo que a lei não poderia dar-lhe e nem foi instituída para lhe fornecer. A fé que se afirma superior à lei na capacidade de servir para assegurar ao homem um sentido à sua vida é alvo de persistente ação destrutiva no pós-modernismo. Já não se fala mais em um mundo secularizado e sim em uma sociedade onde negamos reconhecimento a idéia da existência da própria divindade e julgamos poder ocupar o seu lugar com uma construção humana.

 

A lei é agora o novo deus. Ela foi percebida como a única fonte capaz de expressar a vontade geral. Seu primado é o grande dogma. Sua autoridade é inquestionável e o sistema legal fecha-se em uma ordem hierárquica com a inevitável desqualificação de qualquer outra produção jurídica.

 

A partir do instante em que a economia é o parâmetro que atua como a fonte da moral e da cultura fica aberta o caminho à aceitação de diversas concepções, inclusive as chamadas utilitaristas. Entre elas a do australiano Peter Singer, o chamado utilitarismo de preferência.

 

Singer faz uma distingue ser humano de pessoa. A “pessoa” possui consciência de si, autocontrole e capacidade de comunicação, enquanto para ele “ser humano” é o que pertence à espécie “homo sapiens”.

 

Esses dois sentidos de “ser humano” se equivalem, mas não coincidem. O embrião, o feto, a criança com profundas deficiências mentais e o próprio bebê recém nascido são, todos, membros inquestionáveis da espécie Homo sapiens. Assim como os que se encontram gravemente doentes, em sofrimento, com poucas possibilidades de recuperação possuem pouca ou nenhuma consciência, senso de futuro ou capacidade de se relacionar com os outros.

 

Para Singer o fato de alguém pertencer à espécie homo sapiens não lhe garantia a vida no passado. Lembra que os chamados “bárbaros”, escravos, e crianças malformadas ou doentias podiam ser mortos. Em nome da economia de esforços e de que se deve evitar a dor e sofrimento, Singer indaga se já não é tempo de reavaliar a nossa crença na santidade e intocabilidade das vidas dos membros da nossa espécie.

 

Em contraposição, a crença que afirmou que a letra mata e só o espírito traz a vida deixou claro que o homem não foi feito para a lei. A lei, esta sim, é que foi feita para o homem.

 

O espírito, a inteligência, o logus nos esclarece que não se vive quando aceitamos o comando insensível e reducionista. Submetidos à tese de que viver é afastar qualquer sofrimento, limitamo-nos ao mundo hedonista, onde exploramos a satisfação ou prazer pessoal e não existe espaço para a criação, por estarmos voltados ao consumo. Vida é criação. Vida é compartilhar o ciclo da natureza, em sua plenitude. E isso compreende alegrias e dores.

 

O que há de errado em matar?

 

Entendemos que não se mata apenas no sentido penal, ao retirar a vida, para que se cometa um atentado ao ser humano. Existem outras formas, até mais cruéis, de eliminar a vida. Isso ocorre quando não se permite ao ser humano viver a plenitude de seu espírito criador, transformando-o em um ser que, ao ficar voltado apenas para a satisfação imediata dos desejos, perde o contato com a própria alma.  Prestemos atenção ao que ocorre ao nosso lado, quando a economia baseada no consumo do supérfluo transforma o homem em seu objeto de consumo.

 

Matar também é realizar algo que viole a integridade da pessoa humana, como as mutilações praticadas nas mulheres na África em nome de uma pretensa fidelidade sexual. No mesmo nível de agressão os sofrimentos mentais e corporais com os quais os fundamentalismos religiosos atormentam homens e mulheres. Mata-se, igualmente, quando atendemos cegamente aos princípios da economia neoliberal que ofende gravemente à dignidade humana. São princípios que geram desemprego, condições de vida infra-humanas nas periferias das cidades como a moradia em favelas, onde faltam condições mínimas de higiene, saúde, serviços e segurança pública.

 

A omissão também mata. São igualmente mortais os procedimentos que os poderosos adotam em flagrante violação das consciências individuais como a utilização massiva dos meios de propaganda para criar falsas necessidades de consumo e estilos de vida que são contrários à preservação da mesma, com o esgotamento de bens não renováveis da natureza.

 

Na Carta Encíclica conhecida como o Evangelho da Vida, o Papa João Paulo II considerava atentatória a dignidade humana “as prisões arbitrárias, a escravidão, a prostituição e as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como mero instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Essas coisas e outras semelhantes são infamantes. Ao mesmo tempo em que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.”

 

Dom Cláudio Hummes, em artigo publicado este ano no jornal Estado de São Paulo, lança um olhar sobre a mentira que, segundo a Bíblia, esteve presente na história humana desde a sua origem. Citando o Papa Bento XVI esclarece que já no Gênesis a mentira pronunciada no jardim do Éden era um instrumento de convencimento. Quem a utilizou foi a serpente, um ser de língua bipartida.  A serpente, que nunca existiu, é um forte símbolo bíblico.

 

Condenando as falsas afirmativas declaradas como verdades científicas, sobre superioridade racial e qualidade democrática de determinado sistema social ou econômico, Dom Cláudio esclarece que “o Papa refere-se aqui, obviamente, ao nazismo e ao comunismo. Com certeza ele pensa também no capitalismo, que mantém na miséria, fome e exploração econômica centenas de milhões de seres humanos, até mesmo países inteiros, obrigados a viver abaixo das mínimas condições de vida digna.”.

 

Hobbes no seu “O Leviatã” percebeu e apontou três causas principais quanto à provocação do litígio entre os homens.

 

Primeiro, a competição. Se a seleção natural é movida pela competição, e ninguém pode dizer que ela não é uma realidade, no caso de um obstáculo barrar o caminho para algo de que um homem precise, ou julgue precisar, ele tratará de neutralizar o obstáculo incapacitando-o ou eliminando-o. Essa luta pela sobrevivência do mais apto está presente em toda a forma de vida, da ameba ao ser humano.

 

Segunda, a desconfiança. É o conhecido “paradoxo de Hobbes”. De conformidade com Thomas Hobbes, se você tem um bem (material ou não) ele certamente pode ser desejado por terceiros. Neste caso você é um obstáculo aos desejos, o que o obriga a estar sempre preparado para defender-se. A única opção pode ser isolar ou eliminar os terceiros, preventivamente. A luta será, de uma forma ou de outra, inevitável. Exemplos: a guerra dos seis dias entre árabes e Israel. A guerra na Iugoslávia nos anos 90. A justificativa apresentada pelos Estados Unidos para invadir o Iraque, os conflitos no Afeganistão.

 

Terceira, a “honra”. Hobbes afirmava que os homens lutam por causa de “uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de menosprezo”. Ou qualquer outra coisa que haja sido criada como valor na sociedade em que o homem viva. Está completa a “armadilha de Hobbes”. Para escapar da violência do estado da natureza o homem institui uma sociedade que o esmaga em razão de sua própria estrutura.   A análise de Hobbes conduz à idéia de que a “violência” não é um impulso primitivo e irracional. Ela é o resultado quase inevitável da dinâmica dos organismos sociais racionais movidos pelo auto-interesse. Assim a agressão é inevitável, é filha direta da sociedade criada pelo homem.

 

Sabemos o que causa a violência em nossa sociedade: pobreza, doenças, discriminação, as deficiências do nosso sistema educacional. Não são os genes que causam violência. É nosso sistema social. E, já que sabemos disso e não corrigimos as causas, a violência só existe no atual patamar porque a nossa economia a tolera e deseja. 

 

Conhecendo quais as causas da agressividade e possuindo a inteligência e os meios para eliminá-la, e por serem todas sanáveis, a destrutividade humana só perdura em tal nível superlativo porque não tomamos a opção política de realizar investimentos para por fim à fome, à pobreza, ao analfabetismo, às doenças, à exploração, à submissão. A opção política americana foi a de invadir o Iraque, com o até hoje inacreditável custo de 2 trilhões de dólares.

 

E vejo que os novos bacharéis compreenderam isso, ao reconhecerem que a percepção estreita dos fatos sociais, representado pela palavra sem amor, é a letra que mata. O espírito que traz a vida está com vocês, no respeito devido ao que se encontra ao seu lado, principalmente àquele que é mais fraco e não tem a quem recorrer em suas necessidades.  

 

            O espaço que se estende em torno do homem cresce com a força de sua visão intelectual, da visão de si mesmo e da fé que o anima. O mundo, com o crescimento do espírito de cada um, se torna então mais profundo, com novos enigmas e novas imagens que se apresentam à vista.

 

Consciente das dificuldades até de sobrevivência da espécie, ameaçada pelo esgotamento da Natureza em razão da sanha predatória da economia, o cidadão – entre outros caminhos - precisa proclamar os direitos da Natureza e repudiar o antropocentrismo. Assim, a nova ética estende à Natureza o conceito de ‘fim em si’. Longe de o homem ser o único reconhecido como fim em si, possuindo um valor absoluto, a Natureza também exige não ser tratada como meio. Aos direitos do sujeito racional se superpõem os do planeta que precisamos zelar.

 

Conforme ensinam os intérpretes do Antigo Testamento, em hebraico ‘humano’ e ‘solo’ são palavras de som semelhante (adam, adamah) e, assim é estabelecido um relacionamento muito especial. Este trocadilho é característico do autor javista. Usando duas palavras de sons semelhantes, o autor consegue focalizar a atenção do leitor no relacionamento entre elas. Desse modo é salientada a ligação entre a humanidade e o solo. A criatura humana vem do solo e por isso depende dele para viver. É este o significado da narração do Gênesis de que o homem foi feito do barro.

 

E dependerá do solo até o dia em que voltar para a sua segunda mãe, que é a Terra.

 

Esta é a compreensão que se faz necessária. A nova opção não é, particularmente, nova. Já estava contida nos textos religiosos. Apenas só foi percebida recentemente. A rota para que seja possível o retorno ao equilíbrio está aberta, resta fazer a opção pela vida.

 

E, ao lembrar a relação de cada um de nós com a Natureza recordei um poema de Neruda, onde ele magistralmente mostra o amor, o homem e a Terra como um único ser. Permitam-me encerrar lendo este poema que por ser um pouco da vida é todo amor e é muito de cada um de nós.

 

 

“Pequena rosa,

Rosa pequena, às vezes diminuta e desnuda,

Parece que na minha mão cabes,

Que assim vou te agarrar e te levar à boca.

Porém, de repente,

Meus pés tocam teus pés

E minha boca, teus lábios.

Cresceste,

Sobem teus ombros como duas colinas,

E teus peitos passeiam por meu peito.

Meu braço mal consegue rodear a delgada

Linha de lua nova que tem tua cintura.

No amor, como água do mar, te desataste.

Apenas meço os olhos mais extensos do céu

            E me curvo sobre tua boca para beijar a Terra.”