História dos Crimes Políticos e o Supremo Tribunal Federal:

a Doutrina da Segurança Nacional
no período de 1946 a 1964.

 

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima[1]

 

 

1.      A INVENÇÃO DO BRASIL, A INSTALAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS CRIMES POLÍTICOS.

          Assim como o Brasil é uma invenção do Século XIX, mais precisamente dos acontecimentos que marcaram o chamado Grito da Independência, em 1822,[2] para análise da história do Supremo Tribunal Federal, neste trabalho monográfico, adotar-se-á, como termo inicial, o ano de 1946.

          Considerando-se que o Brasil foi descoberto em 1500, por que a referência ao Brasil de 1822? E, se desde 1539, com as capitanias hereditárias, surgiram as primeiras organizações judiciárias do Brasil, sobretudo no final do Século XVI, quando, em 1587, Filipe I, “O Prudente”, mandou instalar, em Salvador, um Tribunal de Relação, por qual razão o marco de 1946 para traçar o escorço histórico do Supremo Tribunal Federal?

          Toda escolha é arbitrária. Pode-se até ter uma razão para a escolha dentre as análises possíveis. Mas mesmo a eleição da ratio que legitima a análise tem um fundo de arbitrariedade, porque parte de um suposto de fato que tenta embasar a própria escolha. No caso deste brevíssimo estudo monográfico, pretende-se demonstrar que o Supremo Tribunal Federal seguiu uma rota mais ou menos linear na aplicação da Doutrina de Segurança Nacional, em especial na conformação da definição de crimes político, pouco importando tratar-se de período de pleno exercício de liberdades democráticas ou de estado de exceção; sob a forma de governo presidencialista ou parlamentarista; sob tutela de militares ou de civis.

          É que o Brasil, enquanto Estado Nacional, nos moldes da doutrina de Montesquieu,[3] só adquiriu forma concreta de Estado-Nação com a proclamação da República. FUNARI & NOELLI (2006, p. 10) acentuam que antes do surgimento dos Estados nacionais, em geral, “as pessoas se identificavam como oriundas de suas cidades, suas pátrias.”. Com efeito, a origem moderna da expressão país advém do francês pays[4] que significa antes de tudo “cidade”, “aldeia”. O sentido histórico da expressão Estado nacional, surgido no final do século XVIII, está ligado à noção de um povo que tem língua e cultura relativamente homogêneas, delimitado em um dado território, aliado à idéia de soberania. Para FUNARI & NOELLI (2006, p. 10) assim é o Brasil de 1822. Antes disso, escrevem os autores:

 

          ... o que chamamos de Brasil fazia parte de um império, comandado pelo Reino de Portugal, espalhado pelos quatros continentes (Europa, África, Ásia e América, por ordem de conquista portuguesa), com múltiplos idiomas em uso, composto por muitíssimos povos de diferentes origens e tradições. No território do que viria a ser o Brasil, nos três primeiros séculos de colonização portuguesa, falaram-se muitas línguas (português, mas também a “língua geral”, uma linguagem que mescla português e tupi, numerosas línguas indígenas, línguas africanas, espanhol, holandês...) e escreveram-se também em algumas delas (português, latim, “língua geral”, espanhol, holandês...). Os próprios limites do território Brasil só viriam a ser fixados, aproximando-se do que é hoje, no Tratado de Madri, de 1750, entre Espanha e Portugal.

         

          Com essa noção de Brasil inventado em 1822, abandona-se outra de Brasil colônia e, com isso, deixa-se para trás um conceito de Brasil que não existia para outro que se amoldou e firmou-se na realidade que hoje se conhece.

          Em relação ao Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos crimes políticos, o presente estudo, como observado, adota como marco inicial o ano de 1946 e vai até 1964, vésperas do golpe militar de 1964. Seria possível, como se verá, realizar inúmeros outros cortes para analisar sua história. Entretanto, até para manter a coerência, adota-se o ano de 1946 como o período a partir do qual o STF passa a construir a idéia de crime político sob a luz da doutrina da Segurança Nacional.

          De sorte que se pretende demonstrar a contribuição do Supremo Tribunal Federal na construção do Estado nacional Brasil, sob o ângulo de observação de uma doutrina concebida pelos militares, após a fundação da Escola Superior de Guerra.

          Para esse fim, o trabalho, requisito parcial à conclusão da disciplina Historia del Derecho, ministrada pelo Professor Doutor RICARDO D. RABINOVICH-BERKMAN, no Curso de Doctorado en Ciencias Juridicas y Sociales de La Universidad del Museo Social Argentino, estará dividido em quatro capítulos e de uma conclusão.

          Na parte primeira, cuidar-se-á de enfrentar o problema da história do direito enquanto ciência que tem duplo objeto de investigação: a história e o direito. A obra referenciada é a do nosso estimado Professor Doutor RICARDO D. RABINOVICH-BERKMAN, em relevo a primeira parte do livro “Una Viaje por la Historia del Derecho”, em especial os capítulos I e IV.

          O capítulo segundo estará reservado para a chamada Doutrina da Segurança Nacional, a Escola Superior de Guerra e a Lei de Segurança Nacional, com esteio na obra de Adriana Aparecida Marques, sob o título “Concepções de Defesa Nacional no Brasil: 1950-1996. Trata-se de dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira.

          A seguir, no terceiro e último capítulo, parte nuclear do trabalho, será feito um apanhado geral das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre crimes políticos, relativamente à violação da Lei de Segurança Nacional. A pesquisa documental, de 27 de agosto de 2007, às 09H03, incide sobre os 101 acórdãos do STF, no período que inicia em 1º de janeiro de 1946 e finda em 31 março de 1964. Não foram analisadas as decisões monocráticas da Presidência ou de relatores. De igual modo, deixaram de ser analisados os julgados sobre extradição.

          Ao final, serão apresentadas as conclusões que se entenderam devidas.

         

2.      A HISTÓRIA COMO UM ACONTECIMENTO INTERNO E EXTERNO.

          O conceito de história é tão recente quanto a noção de Brasil. Foi no fim do século XIX que surgiu “como ciência voltada para o estudo do passado a partir dos documentos escritos” (FUNARI & NOELLI, 2006, p. 12).

          A história enquanto ciência é a história do passado humano, excluindo-se, por óbvia conseqüência, o passado da natureza. É certo que tanto os homens quanto as pedras têm um passado. A diferença é que somente os acontecimentos humanos possuem um exterior e um interior. As pedras só têm um acontecimento exterior.

          Essa diferenciação é feita pelo historiador britânico ROBIN GEORGE COLLINGWOOD (1986, p. 213):

 

          Por exterior do acontecimento, entendo tudo o que, pertencendo-lhe, pode ser descrito em termos de corpos e dos seus movimentos: a passagem de César, acompanhado por certos homens, de um rio chamado Rubicão, em certa data, ou o derramamento do seu sangue no chão do Senado, noutra data. Por intermédio do acontecimento, entendo aquilo que nele só pode ser descrito em termos de pensamento: o desprezo de César pelas leis da República ou a divergência de política constitucional entre ele e seus assassinos.

 

          Com o problema da diferenciação entre um passado humano e um passado da natureza, o historiador COLLINGWOOD apresenta posição diametralmente oposta à dos positivistas do século XIX, pois vê o historiador como um cientista diferente ao cientista da natureza, uma vez que os acontecimentos históricos não podiam ser entendidos como fenômenos naturais, vistos de fora, logo, serem possíveis de agrupar mediante leis universais. A História, para ele, devia e tinha que ser liberta da tutela das ciências naturais.

          Defende, assim, o fim da idéia positivista da História, avançando com aquela que a entende como a incidibilidade interior e exterior da ação humana, destacando a imprescindibilidade de penetração no interior dos acontecimentos de maneira a interpretar os pensamentos dos agentes históricos neles envolvidos. Neste sentido, a função do historiador é tentar construir a situação em que os agentes estudados se encontravam, assim como a forma como esta era encarada. A propósito, escreve COLLINGWOOD (1986, p. 13):

 

          O passado, consistindo em acontecimentos particulares no espaço e no tempo que já não se verificam, não pode ser apreendido pelo pensamento matemático porque este apreende objectos que não têm situação específica no espaço e no tempo, e é precisamente essa falta de situação espacio-temporal que os torna cognoscíveis.

 

 

3.      A HISTÓRIA DO DIREITO E SEU OBJETO.

          Para RABINOVICH-BERKMAN (2004, p. 1), “a história do direito é a conjugação de duas ciências, a história e o direito, criando uma terceira que, possuindo caracteres daquelas, têm, sem embargo, peculiaridades próprias.” Adiante, apresenta uma breve e erudita noção: a História do Direito: “... [a História do Direito] estuda os fenômenos jurídicos e as idéias jurídicas em seu desenvolvimento, desde o passado remoto até o tempo presente.

          O objeto central da história do direito é a busca da recriação do passado dos acontecimentos humanos com relevância para o Direito. Não só a busca da face externa, mas, acima de tudo, do que vem de dentro, que lhe é inerente, interno, porquanto fruto da criação humana. Ao estudar-se o porquê da regra jurídica, o historiador deve ter presente, como observa NUNO J. ESPINOSA GOMES DA SILVA (2000, p. 27), “que na origem desta, seja consciente ou inconscientemente, existe um querer que, tendo em vista certa situação, age de determinado modo.

          No presente estudo, o fenômeno jurídico a ser investigado recai sobre o nascimento, desenvolvimento e consolidação do conceito de segurança nacional, a partir do julgamento dos crimes políticos pelo Supremo Tribunal Federal.

          Há um elemento externo a ser perquirido: as manifestações do STF sobre crimes políticos. E daí decorre o elemento interno a que se refere o historiador britânico: a razão pela qual o STF adotou, na delimitação do tipo “crime político”, a Doutrina de Segurança Nacional. Algumas questões devem ser avaliadas: existe um atrelamento do julgamento dos crimes políticos à Doutrina de Segurança Nacional? A posição do STF, sobre o tema, é modificada ou permanece a mesma ao longo desse período?

 

4.      UM POUCO DE HISTÓRIA GERAL: O AMBIENTE BRASILEIRO NO SÉCULO XX.

          A era Vargas, com revolução de 30, representa uma reação contra o domínio da oligarquia cafeeira. É um movimento de descontentes (classe média, militares, oligarquias de outros Estados da Federação, etc.).

          A partir de 46 ocorre a volta do regime democrático no Brasil e, nesse sentido, há uma tendência de radicalizar uma perspectiva liberal em relação ao exercício do poder, da atividade econômica, inclusive da postura do Estado em relação à economia. Em certa medida, há um contraponto ao modelo de Vargas, muito mais intervencionista, onde o Estado era muito mais presente em aspectos econômicos.

          A partir de 46 a um nítido foco no liberalismo. Surge uma polarização interessante entre liberais e nacionalistas. Qualificados como nacionalistas estão os que defendem que as riquezas do país devem ser exploradas pelo capital nacional. Já os liberais são partidários a uma maior abertura ao capital estrangeiro, aos investimentos externos. No Brasil o socialismo se alinha aos nacionalistas. O que causa certa perplexidade é que o nacionalismo se aproxima com o autoritarismo.

          Getúlio Vargas volta ao poder, em 51, dentro de um modelo democrático, depois de Dutra, com um grande temor de implantar-se outra ditadura. Vargas mantém uma postura nacionalista, com a estruturação da Petrobras. Dentro do segundo momento de Vargas, há um acirramento muito grande no sentido ideológico. Instala-se uma polarização muito forte do ponto de vista político, com um período extremamente conturbado, que leva Vargas ao suicídio. Alega, em seu testamento, que “forças ocultas” estavam dificultando o exercício de seu poder. Há uma grande comoção popular.

          Logo depois se implanta um governo com a visão modernizadora do país. É um político sem vinculação ao nacionalismo, mais aberto aos investimentos estrangeiros. Brasília é idealizada e construída. A fábrica da Volkswagen é inaugurada e o primeiro automóvel fabricado. Juscelino Kubitschek tem uma postura muito mais voltada ao desenvolvimento econômico, com certo compromisso com o governo democrático.

          Jânio Quadros chega ao poder com uma expressiva votação. Com uma avassaladora votação, inicia uma mudança de prumo inesperada na política exterior brasileira. Jânio realiza aproximações tidas como perigosas pela elite dirigente. Condecora Che Guevara, vai a Moscou, China. Aproxima-se de países de feição socialista e passa a ser com muitas reservas. Vai acabar renunciando à presidência.

          Com o vazio deixado por Jânio, assume o poder Jango – João Goulart, momento em que mais se acirram as disputas ideológicas. A iminência de Jango chegar ao poder representa uma ameaça imensa, pelas relações que Jango mantém com sindicatos e movimentos populares. Tenta-se imprimir um golpe, com a implantação de um regime parlamentarista, tendo Tancredo Neves como primeiro ministro. O modelo não vingou. Ocorre um movimento de reação dos setores conservadores com o movimento marcha pela família, pela propriedade, com apoio da Igreja e do grande capital nacional, sobretudo de São Paulo.

          Também tem uma reação a favor do governo, encabeçada por Brizola, na campanha da legalidade constitucional. Jango assume e acirra a polarização com o anúncio das reformas de base, criando-se um contexto golpista favorável.

          Em 1964 os militares assumem com o discurso de resguardarem os valores da nação. Entra em cena a chamada doutrina do soldado-cidadão (Ato Institucional nº 1). Os governos militares, no afã de conter uma proposta socialista no Brasil, implantam um governo com feição autoritária, com restrição às liberdades individuais e direitos políticos. Serão governos marcados pela tentativa de por em prática a doutrina da segurança nacional, sobretudo nos centros urbanos. Muito embora a luta tenha se dado no campo (Liga Camponesas, Araguaia).

          A partir de Geisel, vigora a política de abertura lenta e gradual, numa disposição dos militares ao retorno do exercício do governo pelos civis, na chamada transição democrática. Chegam as eleições indiretas em 85, elegendo Tancredo Neves e José Sarney, pelo colégio eleitoral.

          Elabora-se a nova Carta, em 1988, com a reestruturação de um novo Estado Brasileiro, assentado no pluralismo, democracia, respeito às liberdades individuais, sociais e políticas.

 

5.      AS FORMAS DE CONTAR A HISTÓRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

          São diversas as formas de traçar o perfil histórico do STF. A primeira delas é a de ligar a história do Supremo com a história republicana. Então o Supremo teria vivido duas fases: a primeira durante o Império; e, a segunda, após a proclamação da República.

          Neste trabalho, como enfatizado anteriormente, considera-se o nascimento do Supremo com a proclamação da república. Sendo assim, a periodização pode levar em conta a própria história republicana, considerando-se, com LEONARDO ANDRÉ PAIXÃO (2007, p. 112), cinco períodos: República Velha (1891-1930); Estado Novo (1930-1945); período Democrático-Populista (1946-1964); Regime Militar (1964-1985); e a chamada Nova República (1985 em diante).

          Outra forma de apresentar a história do Supremo é levando em consideração as Cartas Constitucionais adotadas, sendo, pois, os seguintes os períodos: independência de Portugal em 1822, que corresponde a Constituição de 1824; Proclamação da República em 1889, que corresponde a Constituição de 1891; Revolução de 1930, que corresponde aos Textos de 1934 e 1937; à Redemocratização de 1945 a Constituição de 1946; ao Golpe Militar de 1964 corresponde a Carta Magna de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/69; e finalmente, ao movimento pelas Diretas Já nos fins dos anos 80 corresponde a Constituição Federal de 1988.

          Para a leitura da história do Supremo sob a perspectiva do exercício de sua função política, LEONARDO ANDRÉ PAIXÃO (2007, p. 112-114) propõe uma divisão diferente, que leva em conta o maior ou menor grau de exercício da função política da Corte Constitucional brasileira.

          Para o autor, a história do Supremo deve ser analisada em sete períodos distintos: Fase Inicial (1891-1897) – período de implantação do Supremo, com grande rotatividade de ministros, marcado pela hesitação, em que “o Supremo Tribunal Federal ainda estava em busca de seu papel institucional na República recém proclamada”; Fase de Ampliação do Papel Institucional (1897-1926), fase de estabilidade do Órgão e da chamada Doutrina Brasileira do Habeas Corpus, onde o Supremo delineia seu papel como Poder; Fase da Contenção Imposta (1926-1945), “período durante o qual vários setores políticos consideraram que o Supremo Tribunal Federal tinha ‘ido longe demais’ e procuraram refrear sua capacidade de exercer função política”; Fase da Contenção Voluntária (1945-1964), fase em que, estando afinado o Legislativo e o Executivo, o Supremo retoma suas prerrogativas de órgão político; Fase de Enfrentamento (1964-1968), período marcado por um conjunto de atos atentadores contra a independência do Supremo, por meio dos chamados Atos Institucionais outorgados pela Governo Militar mas que, apesar disso, o STF fez com que a Constituição e a legislação fossem observadas; Fase de Esvaziamento da Competência (1968-1988), “período marcado pelo pouco espaço jurídico remanescente para que o Supremo Tribunal Federal exercesse função política.”; Fase da Retomada do Exercício das Funções Políticas (de outubro de 1988 até nossos dias), faze em que há uma ampliação do papel do Poder Judiciário e uma ativa participação política do Supremo.

 

6.      A HISTÓRIA DO DIREITO COMO ACONTECIMENTO EXTERNO E INTERNO: CONJUNTURA NACIONAL E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NO PERÍODO DE 1946 A 1964.

          O corte histórico a ser empreendido neste trabalho leva em conta um período político democrático e populista, onde vigeu uma Constituição promulgada e não outorgada, em que o Supremo, afinado com os demais Poderes, retoma suas prerrogativas de Poder Político e, voluntariamente, atua moderadamente nas questões políticas.

            Em suas funções políticas, o Supremo tem de ser visto como Corte Constitucional e não como órgão de cúpula do Judiciário. É que no Brasil o STF desempenha essas duas funções: guardião da Constituição e órgão de cúpula ou típico tribunal de cassação.

          A atuação do Supremo pode ser enquadrada em quatro tipos diferentes de manifestações políticas: separação dos poderes; federalismo; direitos fundamentais e funcionamento das instituições democráticas.

           Por seu turno, a idéia de crime político está ligada à de standard jurídico, ou seja, de verdadeiro conceito aberto pelo qual seu conteúdo varia de textura no tempo e no espaço. Os autores têm convergido para dois critérios definidores de crimes políticos: o objetivo e o subjetivo. O primeiro refere-se à qualidade do bem jurídico violado. O último refere-se à vontade do agente, isto é, o fim que motivou sua conduta.

          Aqui não se quer entrar na tese de NILO BATISTA de que todo crime é político:[5]

          O que há é o seguinte: o Estado do Bem-Estar tinha um sistema penal que, como todo sistema penal, era uma coisa destrutiva, negativa, porque a pena é o pior modelo de decisão de conflitos. Quando você criminaliza um conflito, faz uma opção política. Não existe um crime natural. Todo crime é político. Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, que é uma grande figura, deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou, “professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político?”, e o Thompson falou, “a diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe”.

 

          O porquê do marco inicial em 1946 para analisar a história do Supremo está intimamente relacionado à criação da ESG – Escola Superior de Guerra, em 1948. Também serve para demonstrar que a aplicação da Lei de Segurança Nacional contra certos “subversivos”[6] não ficou adstrita ao período do Regime Militar inaugurado com o golpe de 1º de abril de 1964. A história do STF a partir de 1946, tendo como pano de fundo os crimes políticos, revela, ainda, para demonstrar que a dicotomia direito fundamental versus segurança do Estado em nada está ligada à oposição democracia versus ditadura, mas corresponde a uma forma de ver o mundo durante a chamada “guerra fria”.

          A relação do momento histórico com a produção jurisdicional do Supremo ela é fundamental, não necessariamente buscando um aprofundamento sobre a questão do poder, mas principalmente pra ver de que forma um contexto marcado pelas liberdades democráticas viabilizam um determinado tipo de produção jurisdiciona.

          Cria-se certa tendência de transposição, para dentro do Judiciário, uma perspectiva autoritária ou uma tendência a fechar a interpretação de sentidos dos conceitos abertos. Possivelmente num regime democrático imagina-se que a apreciação em torno dos conceitos abertos seja mais dialógica, em que fique permitido um exercício mais amplo do contraditório entre as partes. A própria decisão expressa um pouco essa abertura democrática. Já num regime autoritário, imagina-se que, muitas vezes, até por tratar-se de um Tribunal com funções políticas, alinhado aos ocupantes do poder, acabe refletindo uma postura menos democrática, uma postura menos tolerante em relação às diferenças, e acabe fechando questão com determinada interpretação, até no sentido de dar, ao conceito aberto, um conteúdo fechado, no sentido de que ele acaba produzindo um modelo de interpretação dessas cláusulas abertas que não abre tanto espaço para incertezas, na medida em que é uma decisão já previsível. Ou, então, de outra forma, que acabe produzindo um modelo extremamente incerto, ou seja, a prevalência dos argumentos autoritários. Esses, quando se consolidam, afastam as incertezas.  Paradoxalmente, eles, em si mesmos, são uma dose alta de incerteza, ao menos até se tornarem hegemônicos, são a realização mais profunda da incerteza. Depois, entretanto, petrificam, na forma de interpretação da constituição, por exemplo, já tendem a adquirir uma certeza “sádica”; certeza que não permite um debate democrático em torno dessas cláusulas.

          Pode-se dizer, com isso, que o conhecimento e a construção do saber científico, que emprestam certa legitimidade às decisões judiciais, estão em permanente processo de criação, de mutação, ainda que transitoriamente ele seja certo.

          Parece que quando os temas discutidos, pelo Supremo, em sua função de Tribunal de Cassação, temas como prescrição, decadência, etc., ou seja, os produtos do sistema genuinamente jurídicos, o Supremo é firme. Assim, por exemplo, é possível dizer que o Supremo nunca titubeou em dizer que, em sede de apelo extremo, é impossível suprimir-se instância, em homenagem ao princípio do juiz natural. Mas na construção de conceitos que decorrem da comunicação do sistema jurídico com outros sistemas societários e, que o conceito ali tirado influencia a ambos os sistemas, aí, parece, o campo da incerteza aumenta exponencialmente.

          Então, pode-se dizer que o conceito de crime político sofreu, ao longo desse período histórico, essa construção baseada na incerteza de seu conteúdo, enquanto que o conceito de preclusão pouca mutação sofreu. Perder o prazo de um recurso, já era! Seja em que período for a solução sempre será a mesma: o recurso não será recebido. Já a expressão crime político varia de textura de acordo com o período histórico. Quando a discussão é sobre tema estritamente técnico-jurídico, sequer há necessidade de comunicação do direito com outros sistemas sociais, ele se torna auto-suficiente, pois está fechado em torno de si próprio. Agora, quando a construção gira em torno de conceitos indeterminados, de natureza mais complexa, para não dizer hiper-complexa, há, de forma diametralmente oposta, uma mútua influência do direito com os outros sistemas societários.

          Não existe distinção relativamente ao tratamento dessa tensão entre “capital e trabalho” no período que vai de 1946 a 1988, ou melhor, seja 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, a tensão “capital x trabalho” estará sempre reproduzida no texto Constitucional, na interpretação do STF e, ainda, no próprio seio da sociedade, numa tensão que ficará em torno do debate capitalismo (liberdade) e socialismo (não liberdade); não entre democracia (liberdade) e ditadura (não liberdade). Até seria possível dizer que o debate ficaria em torno da questão “capitalismo + democracia = liberdade” versus “socialismo + ditadura = não liberdade”, quando as sociedades analisadas fossem as do centro do sistema produtivo, no caso, EUA, França, Inglaterra, etc., de um lado e, de outro, ex-URSS, China, Cuba, etc., de outro. Mas o Brasil, periferia do sistema, não se repete essa tensão, sob pena de profunda contradição.

          A América Latina como um todo, ao longo no século que corresponde ao período histórico a ser estudo neste trabalho, ficará sob a doutrina da segurança nacional. A ser analisada a doutrina da segurança nacional, que vem logo em seguida a segunda Grande Guerra, capitaneada por um bloco econômico-militar liderado pelos EUA, uma formação geopolítica para contrapor ao outro bloco formado pela ex-URSS. Então pode-se perguntar se em 1946 existiam essas “forças externas” que mereciam a atenção do Estado Nacional contra possíveis ameaças do “inimigo”, no caso do Brasil, o inimigo socialista seria a URSS, CUBA, etc.? Sim. Existia antes mesmo de 1946, pois ainda na ditadura Vargas (1937 a 1946) o Brasil, por seu mandatário, jogou com os EUA e a Alemanha. O Brasil, seja em 1946, seja em 1967, o inimigo externo, o diálogo, na construção do crime político fica muito na afirmação da teoria da doutrina nacional, muito mais do que a tensão democracia e ditadura. Não seria um problema de democracia ou de regime autoritário. Agora, tomado o período pós-constituição de 1988, a tensão será válida. 1946, e mesmo antes disso, e até 1967, até chegar em 1988, esses marcos não correspondem a interpretação dada pelo STF sobre os crimes políticos, ou seja, em 1946, 1964 até antes de 1988 o STF julgava os crimes políticos resolvendo uma tensão para além do regime político, mas estampava a luta contra um inimigo externo, encarnado na ex-URSS e em seus aliados, que seria o “comunista”.

          A análise histórica tem que girar não em torno da oposição “democracia” e “não democracia – autoritarismo”. A doutrina de segurança nacional se fortalece mais nos regimes autoritários, então o regime autoritário, por não ser dialógico, precisa ter de logo um inimigo, inclusive interno, nem que esse inimigo interno represente os interesses de um inimigo externo. É preciso localizar um tipo de comportamento que é incompatível com o modelo vigente. Então em um período autoritário a tendência é de que a doutrina da segurança nacional se consolide e fortaleça, até como um escudo do poder, uma necessidade de negar o outro, precisa ser posto de lado. Pois num regime autoritário não há espaço para divergência, não há espaço para o questionamento do Estado, do poder, da maneira de como se estrutura a sociedade. O que prevalece é a obediência da sociedade civil às determinações do governo. A tendência em regimes autoritários é que a doutrina da segurança nacional se fortaleça como discurso negador da divergência, da diferença, porque a diferença não tem lugar nas ditaduras. Não há como conceder espaço para quem quer falar contra o governo, o estado na forma que está estruturado. Nesse ínterim, de 1946 a 1964, embora num regime democrático, permanece aquela divergência ideológica que muitas vezes legitima a própria decisão que põe na ilegalidade um partido político que não tem uma feição ideológica que não seria consentânea com a tradição das elites brasileiras, a partir de um esforço dessa elite.

          Permanece esse temor que perdura até as vésperas do golpe quando Jango chega ao poder, ao afastar-se das elites, aproximando dos movimentos sociais, e busca uma reforma mais profunda do Estado, e de logo é enquadrado como alguém que não representa um projeto que não interessa ao Brasil, ao menos para suas elites. A narrativa desse período histórico, que inicia em 1946 e termina em 1964, deve ser visto sob esse ângulo de observação, que a história em si tem essa questão, que está sendo construído o conceito jurídico de crime político, no plano das incertezas, afirmando-se que no período democrático ele é abrandado.

          Outra leitura possível seria não distinguir entre “democracia” e “ditadura”, no período investigado, no que tange a essa visão comum do Estado, de quem ocupa o Estado, inclusive do Poder Judiciário, mas tratar como uma questão de Estado, a luta contra o inimigo externo, a defesa dos interesses do capital contra o trabalho (leia-se: EUA x ex-URSS). O movimento de 1920, tenentismo, o Cavaleiro da Esperança, desde ali existe um inimigo externo visível, contra a ex-URSS. Até 1988, indistintamente, seja democracia, seja ditadura, existia um inimigo comum e constante do Estado brasileiro, que teria ajudado a formatar o conceito jurídico indeterminado constante do tipo crime político, emprestando-lhe certo norte.

          No século XX pode-se realmente perceber uma polarização no sentido ideológico do mundo, que se dá a partir da revolução russa, em 1917, quando acende ao poder um modelo de estruturação de Estado nos moldes socialistas.

          A partir dali passam a conviver dois modelos distintos. De um lado um modelo de orientação capitalista e de outro de orientação socialista, com todas as suas implicações ideológicas. Essa disputa ideológica, por exemplo, vai repercutir na própria estruturação dos Estados, após a primeira Grande Guerra. Algo que também vai viabilizar a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Os alemães, a partir de Hitler, por exemplo, embora o partido que lhe dera sustentação tenha uma caracterização formal de cunho socialista, na verdade é partido que tem uma orientação totalitária, implantando um modelo nazista que todos conhecem. Partido que se aproxima do fascismo italiano de Mussolini. Então, esse momento marca bem essa polarização, onde fica implícita essa aversão ao modelo socialista ou contra sua implementação

          Essa polarização ideológica reflete-se no Brasil, em movimentos como o integralismo, na década de 30, de cunho fascista, movimento de contraponto de uma proposta socialista. O Brasil passa a viver, pois, no seu dia-a-dia, essa polarização ideológica e aquele temor ao comunismo passam a ser um elemento que vai impregnar o imaginário político brasileiro, sobretudo na elite política dirigente. Assim, pode-se dizer que tanto nos regimes autoritários, como nos períodos democráticos, de 30 até a queda do muro de Berlim, percebe-se essa polarização. O componente democrático não é, assim, uma bandeira tão decisiva como essa polarização entre capitalismo e socialismo, porque tanto o capitalismo quanto o socialismo podem ser compatibilizados com os regimes totalitários de feições autoritários. O componente democrático não é o diferencial entre esses sistemas, ao menos para a periferia desses sistemas.

          No centro, no caso EUA e ex-URSS, a verdade é outra.  A “liberdade” americana é uma liberdade de moldes individualistas, a própria concepção democrática americana é uma concepção de molde liberal, e não representa uma proposta democrática em sentido material. Mas uma democracia representativa, formal, e se compatibiliza com a liberdade dos indivíduos livremente dispor de seu patrimônio, principalmente de resguardar a liberdade individual, o patrimônio, garantir o patrimônio próprio, particular, privado. Já o modelo socialista tende a negar esse víeis da liberdade individual. Com efeito, a convivência do socialismo com a liberdade foi sempre muito problemática. Só que, curiosamente, os regimes autoritários, digamos assim, de direita, também negaram a possibilidade da liberdade. Por exemplo, o modelo brasileiro implantado em 64 é um modelo autoritário, compatível com o capitalismo e que nega a liberdade, por exemplo, a liberdade de expressão. Nesses aspectos, então, os sistemas se aproximam. Não há uma diferença profunda em relação ao que se contrapõe, ao socialismo, como ele era praticado no leste europeu, que era o modelo hegemônico.

          A diferença não se expressa nessa vivência democrática e acabam os discursos e as práticas tendem a radicalizar de parte a parte. Assim, mesmo nos regimes democráticos vivenciados no Brasil, como no período da investigação desse trabalho, permanece aquele temor, receio, de que a proposta socialista se efetive. Aí no momento em que ela ganha condição de se efetivar, de viabilizar, os militares tomam de assalto o poder, sob o argumento de defesa dos interesses nacionais. Mas não seria possível admitir, que efetivamente tratava-se, embora seja um problema difícil para a sociedade brasileira enfrentar essa questão, até mesmo em razão das atrocidades cometidas pela ditadura militar de 64, mas que realmente existia ali uma verdadeira guerra de parte a parte, de financiamento externo dos militantes de esquerda.

          De certa forma, mais do que um temor, existia uma guerra travada nos bastidores e em público, às vezes. Existia uma tensão muito grande, de um país eminentemente rural, sem estradas, com grotões por toda parte, profundas desigualdades sociais, reunindo-se as condições favoráveis para uma revolução do poder nos moldes da revolução Russa de 1917.

          Não se pode dizer que para fora da Rússia tenha existido um movimento revolucionário popular socialista, ao menos dos moldes da revolução de 17, porquanto foi um acaso decorrente da segunda Grande Guerra. Quando Moscou precisava chegar a Berlim, com a guerra praticamente perdida, eram os aliados tentando entrar pela Itália e França, onde, efetivamente, tinham mais riquezas e mesmo por questões topográficas, já que estavam lutando na África; e Moscou vindo por dentro, tanto que os Russos chegaram primeiro a Berlim. Então, a Polônia, Hungria, Eslováquia, República Tcheca, foram regimes socialistas populares? Claro que não. Foram países postos sob a tutela da Rússia, de cima para baixo, com todas as atrocidades de um regime totalitário de esquerda.

          De certa forma o Brasil não seria um modelo ideal para implantação de um modelo socialista. O problema é que vigorou, e ainda vigora uma tendência de transpor modelos europeus para uma realidade que é incompatível com a herança cultural brasileira. Na verdade, foi uma experiência um tanto quanto curiosa. Acreditava-se que a revolução estaria muito próxima e, na verdade, nunca chegaria como atestam hoje os próprios revolucionários de ontem. Realmente foi um movimento intelectual de pessoas que tinha acesso a essas idéias e que se disseminou por um país bastante agrário, apesar de ter vivenciado uma tímida industrialização.

          Assim, seja autoritário ou democrático o regime vigente no Brasil, é possível uma narrativa linear a partir da construção da idéia dos crimes políticos, sob a perspectiva do “inimigo”, esse diálogo com o outro, não em termos de soberania, mas sim nesse contexto mais global, de bipolarização entre um mundo tendo os EUA como modelo, de democracia, e, de outro, tendo como valores o socialismo, o fim da propriedade privada, tendo como protagonista a ex-URSS. Essa polarização paira sob regimes democráticos. Essa bipolarização ideológica persiste. O que talvez as fontes demonstrem é que nos períodos de liberdades democráticas há uma diminuição da quantidade de condutas que vai ser enquadrada no tipo penal definidor dos crimes políticos, ou seja, há uma descriminalização de uma série de manifestações que nos regimes autoritários são criminalizadas. Mas a polarização vai pairar em ambos os regimes. Nos regimes autoritários seria um momento de maior vulnerabilidade quanto ao inimigo externo, pois, nesses instantes, ele é cantado e decantado sistematicamente, ou seja, ele é localizado explícita e institucionalmente. No regime democrático até tolera-se e dialoga-se com esse inimigo, mas ameaçado, retrocede-se. Até no imaginário isso vai perpassar nos julgadores. Vão passar com maior clareza esses valores ideológicos. Uma coisa é ser magistrado num regime que tem um recado direto para alguém que ocupa algum cargo no Estado. Outra é estar magistrado com maior liberdade para decisão. Mas talvez seja nesse momento que se expresse com maior convicção essa posição ideológica de um Tribunal, pois esse componente ideológico recai sobre qualquer decisão judicial, na medida em que o mito da neutralidade é uma impossibilidade. Talvez os próprios juízes sentissem medo de perder suas próprias cabeças...

          Talvez ao julgar, ao decidir ainda sob a luz de um regime democrático, mas diante de uma possibilidade de uma tomada de poder pelo representante do inimigo externo, tenha sido o móvel para as tomadas de posição desses magistrados.

          Tomada a referência desse corte de polarização ideológica entre ex-URSS e EUA, pode-se dizer que em 46 o STF teria uma composição muito mais identificada com as causas do bloco político dos EUA do que em 64. Em 64, alguns ministros tinham uma ligação muito próxima com o Poder que seria derrubado com o movimento militar de 1º de abril, pois pelos menos três ministros foram aposentados e um terceiro que pediu aposentadoria logo em seguida. Ministros estes que tinham sido postos por Jânio Quadros e Jango, correspondendo a um período que o País estaria mais vulnerável ao inimigo.

          Mas em 46 não vê isso, porque os juízes de 46 não perderam a cabeça, não foram aposentados. A formação do STF em 46 era muito mais conservadora, tomando como ponto essa polarização, ela seria muito mais a favor do modelo americano. Em 46 estar-se-ia diante de um STF que tinha que superar um modelo varguista, autoritário, personalista, populista, com muita concentração de poder na mão do Executivo. E isso não representa um alinhamento com um modelo socialista. É um modelo mais liberal, aberto, mas política e economicamente ligado ao modelo capitalista. Então há liberdade, mas também necessidade de superar uma perspectiva Varguista.

          Em 64, às vésperas do movimento militar, existiam ministros simpáticos à Jango, uma visão não só mais liberal mas também socialista em relação ao poder, porquanto o confronto não é mais numa perspectiva Varguista, mas entre um  modelo liberal e um modelo socialista. Essa polarização ideológica estava muito forte naquele momento. Quer dizer, os ocupantes do poder perceberam que era um momento em que a polarização se tornou muito efetiva, forte. Em 46 essa polarização não tinha um corpo que ganhou em 64. Porque o que era necessário desconstruir, além de desconstruir o problema do inimigo interno e externo, era o próprio modelo Vargas.

          Isso tudo é o lado interno do acontecimento histórico que ora se inicia a narrativa. Desvendar a posição do Supremo, no exercício de função política, em um período de liberdades democráticas.

 

 

7.      A ORIGEM DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA: POSITIVISMO COMTIANO, MISSÕES ESTRANGEIRAS E DOUTRINA DA GUERRA TOTAL.

          No sítio eletrônico da Escola Superior de Guerra consta o histórico da instituição:[7]

          A Escola Superior de Guerra (ESG) resultou de estudos desenvolvidos por um grupo de militares preocupados com as conseqüências da recém-terminada Segunda Guerra Mundial.

          Em 1948, o General Salvador César Obino, então Chefe do Estado-Maior Geral (antigo Estado-Maior das Forças Armadas - EMFA e hoje Ministério da Defesa), criado dois anos antes, em visita ao NATIONAL WAR COLLEGE, nos EUA, contou, de imediato, com o apoio dos norte-americanos, que se prontificaram de enviar uma missão militar para dar suporte à implantação da referida Escola.

          Em dezembro daquele ano, o General-de-Divisão Oswaldo Cordeiro de Farias foi colocado à disposição do EMFA, para elaborar o anteprojeto do regulamento da Escola Superior de Guerra, juntamente com o Coronel-Aviador Ismar P. Brasil, o Tenente-Coronel Affonso Henrique de Miranda Corrêa, o Capitão-de-Fragata Celso A. de Macedo Soares Guimarães e o Tenente-Coronel Idálio Sardenberg. A Missão Militar americana já se encontrava no Brasil. Um documento elaborado, por este último oficial, com o título de Princípios Fundamentais da Escola Superior de Guerra, serviu de base para a redação do Regulamento da ESG.

          Desta maneira, pela Lei n° 785, de 20 de agosto de 1949, foi "criada a Escola Superior de Guerra, um instituto de altos estudos, subordinado diretamente ao Ministro da Defesa e destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de assessoramento e direção superior e para o planejamento da segurança nacional". Acrescentava a Lei que a ESG deveria funcionar como centro permanente de estudos e pesquisas, ministrando cursos que fossem instituídos pelo Poder Executivo.

          A Escola foi idealizada, em princípio, para ministrar o Curso de Alto Comando apenas para militares, entretanto, terminou sendo organizada para receber, também, civis, sendo criado o Curso Superior de Guerra (CSG). O curso destinado, exclusivamente, para militares, Curso de Estado-Maior e Comando das Forças Armadas (CEMCFA) começou a funcionar em 1954.

          O General Cordeiro de Farias foi o primeiro Comandante da ESG, no período de 1° de setembro de 1949 a 11 de dezembro de 1952. O General Juarez Távora, depois de realizar o curso da Escola, foi o seu segundo Comandante.

          No dia 15 de março de 1950, com a presença do então Presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra, iniciou-se o ano letivo da ESG, sendo a Aula Inaugural proferida pelo General César Obino, no auditório da antiga Escola Técnica do Exército, atual Instituto Militar de Engenharia (IME).

 

          Para ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 19), a criação da ESG, inspirada na War College dos EUA, tinha como objetivo político a transformação do Brasil em uma “grande potência”.

          Os militares sempre estiveram atrelados aos civis para a manutenção do governo. Com efeito, a Guerra do Paraguai aflorou no Exército um espírito de corpo, orgulhoso da vitória, e de ressentimentos com as lideranças políticas, com a convicção de que as “questões de defesa só serão pelos próprios militares[8].

          Outro fator importante na defesa da intervenção militar na política foi o conceito de “soldado-cidadão”, “segundo o qual os militares eram considerados cidadãos fardados aos quais não se poderia negar direito de participar na vida política do país”. Hoje, no Brasil, o Ministério da Defesa mantém um Projeto intitulado “Soldado-Cidadão”, que tem[9]

          ... por finalidade fornecer uma qualificação profissional aos militares das Forças Armadas, permitindo aos que serão licenciados, por término do tempo de Serviço Militar, enfrentarem o mercado de trabalho em melhores condições.

 

          Com a República o Exército tornou-se a armada hegemônica, tendo duplicado seu contingente e passado a ter forte atuação no cenário político. Em 1906, sob o comando do Marechal Hermes da Fonseca, nomeado Ministro da Guerra, iniciou-se a modernização da Força, com o intercâmbio feito com o Exército Alemão. Jovens oficiais brasileiros foram treinados pelos Alemães e, em 1913, fundaram a revista “Defesa Nacional”, ainda hoje publicada, com a finalidade de difundir idéias e conhecimentos.

          Devem-se aos Jovens Turcos[10] a proposta de tornar obrigatório o alistamento militar, sob o fundamento seguinte, como escreve ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 26): “a organização do Exército era indispensável à existência do Estado-Nação; cabia a todos os cidadãos assegurar a existência do Estado-Nação.”.

          Esse processo de modernização do Exército recebeu importante apoio na década de 20 quando o Brasil recebeu a Missão Militar Francesa, que introduziu os estudos de guerra no Exército. Outro avanço na modernização foi a adoção de novas regras a carreira de militar, onde a formação profissional de cada oficial passou a ser considerada, substituindo-se a antiga forma de promoção assentada no apadrinhamento político.[11] Entre todas as mudanças ocorridas pela influência da Missão Francesa a mais importante, para ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 29), residiu na estruturação do Estado-Maior, ao destacar:

 

          Essa reestruturação, associada à triplicação do efetivo do Exército durante a década de 20 em conseqüência da lei do serviço militar obrigatório, possibilitou a implantação de uma nova estrutura organizacional, na qual os pequenos destacamentos foram substituídos por grandes unidades de acordo com um planejamento nacional, sem grande interferência das oligarquias locais. Essas unidades foram redistribuídas geograficamente em função de um conceito estratégico de defesa territorial influenciado pela ocupação francesa do Magreb africano e da campanha militar da Primeira Guerra Mundial.

 

          No governo Vargas (1930) os militares foram aliados de primeira hora. O apoio ao movimento decorreu da “visão predominante entre os oficiais de que o país era governado por uma elite corrupta e incompetente, voltada somente para a defesa de seus próprios interesses”.[12]

          A visão política do Exército, relativa ao movimento de 30, pode ser resumida na posição do general PEDRO AURÉLIO DE GÓES MONTEIRO (s.d., p. 163), comandante militar da Revolução, no livro A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército:

 

          A política do Exército é a preparação para a guerra, e esta preparação interessa e envolve todas as manifestações e atividades da vida nacional, no campo material – no que se refere à economia, à produção e aos recursos de toda a natureza – e no campo moral, sobretudo no que concerne à educação do povo e a formação de uma mentalidade que sobreponha a tudo os interesses da pátria, suprimindo, o quanto possível, o individualismo ou qualquer outra espécie de particularismo.

 

          O pensamento do general Góes Monteiro vai ao encontro da teoria da guerra total idealizada pelo general Alemão Enrich Lundendorff, citado por ADRIANA APARECIDA MARQUES, pela qual inexiste paz, apenas momentos de preparação para a guerra.  Daí se constrói a posição de defesa permanente do Estado contra agressão externa.

          Contada a mesma história por outro ângulo de observação, ÂNGELO PRIORI (2007, p. 1), Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, escreve:

 

          O grupo militar que tomou o poder em 1964 vinha de uma tradição militar mais antiga, que remonta à participação do Brasil na II Guerra. A participação do Brasil ao lado dos países aliados, acabou sedimentando uma estreita vinculação dos oficiais norte-americanos e militares brasileiros, como os generais Humberto de Castelo Branco e Golbery Couto e Silva.

          Terminada a guerra, toda uma geração de militares brasileiros passaram a freqüentar cursos militares norte-americanos. Quando esses oficiais retornavam dos EUA, já estavam profundamente influenciados por uma concepção de “defesa nacional”. Tanto que alguns anos mais tarde vão criar a Escola Superior de Guerra (ESG), vinculada ao Estado Maior das Forças Armadas. Essa escola foi estruturada conforme sua similar norte-americana National War College.

          Nos dez anos que vão de 1954 a 1964, a ESG desenvolveu uma teoria de direita para intervenção no processo político nacional. A partir de 1964, a ESG funcionaria também como formadora de quadros para ocupar funções superiores nos sucessivos governos (Brasil: Nunca Mais, 1985, p. 70).

          Foi dentro da ESG que se formulou os princípios da Doutrina de Segurança Nacional e alguns dos seus subprodutos, como por exemplo, o Serviço Nacional de Informações (SNI). Essa doutrina, que vai virar lei em 1968, com a publicação do decreto-lei no. 314/68, tinha como objetivo principal identificar e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, todos aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido. E é bom que se diga que “inimigo interno” era antes de tudo, comunista.

 

 

8.      A DEFINIÇÃO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO.

          MARIA HELENA MOREIRA ALVES (1984, p. 27) define a Doutrina de Segurança Nacional brasileira da forma seguinte:

 

          Em sua variante brasileira, a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento constitui um corpo orgânico de pensamento que inclui uma teoria de revolução e subversão interna, uma teoria do papel do Brasil na política mundial, e um modelo específico de desenvolvimento econômico associado-dependente que combina elementos da economia keynesiana ao capitalismo de Estado.

 

          Tratava-se, com efeito, de verdadeiro projeto de redenção nacional, que cobria elementos políticos, sociais, econômicos e militares, tendo como protagonista principal os militares, de acordo com a concepção de mundo forjada pela ESG.

          ADRIANA APARECIDA MARQUES condensa os principais fundamentos da Doutrina de Segurança Nacional, presentes em todos os manuais da ESG, a saber:[13]

 

          1) A segurança nacional, definida como o grau relativos de que garantia que o Estado pode proporcionar à Nação por meio de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, para, superando os antagonismos, conquistar e manter os objetivos nacionais permanentes.

          2) O poder nacional, tido como a capacidade que tem o conjunto integrante dos homens e dos meios que constituem a Nação, atuando na conformidade da vontade nacional, de alcançar e manter os objetivos nacionais, que podem ser: a) permanentes, quando formados por ‘elementos estáveis’ na opinião de seus formuladores com a democracia, a integração nacional, a integridade do patrimônio nacional, a paz social, o progresso, a soberania; ou b) atuais, quando correspondentes a uma situação momentânea e puderem ser traçados para responder a determinadas conjunturas

 

          Produto da guerra fria e tendo como inimigo interno e externo o “comunismo”, a opção ideológica da doutrina esguiana parte de uma noção “cultural” de alinhamento do Brasil com o ocidente-cristão sob ameaça do perigo comunista.

          Em resumo: pode-se dizer que o pensamento estratégico militar brasileiro partiu de três fontes para definir a Doutrina de Segurança Nacional: o positivismo, como pensamento filosófico reinante; a influência das missões militares estrangeiras; e das teorias geopolíticas disponíveis, através da noção de guerra total.

 

 

9.      A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE SEGURANÇA NACIONAL.

          Em pleno era Vargas, durante o Estado Novo, foram editados três diplomas legais sobre o tema. Os dois primeiros, de 1935, definiam os crimes contra a ordem política e social; e o segundo, de 1938, definia os crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do estado e contra a ordem social.

          Neste período, a competência para conhecer e julgar causas envolvendo a aplicação desses diplomas legislativos foi confiada ao Tribunal de Segurança Nacional, criado dois anos antes, em 1936.[14]

          Além da limitação imposta ao Judiciário para concessão de habeas corpus, foi editada a Lei do Mandado de Segurança, importante instrumento para a defesa de direitos e garantias que não constituíssem lesão ao direito de locomoção.[15]

          Sob a influência da Doutrina da Segurança Nacional esguiana, foram publicados dois importantes diplomas legais envolvendo a matéria de segurança nacional: a Lei de Imprensa e a Nova Lei de Segurança Nacional.[16]

          O art. 2º da Lei nº 1.802/1953, define, como crime contra o Estado e a sua ordem política e social, tentar (I) submeter o território da Nação, ou parte dele, à soberania de Estado estrangeiro; (II) desmembrar, por meio de movimento armado ou tumultos planejados, o território nacional desde que para impedi-lo seja necessário proceder a operações de guerra; (III) mudar a ordem política ou social estabelecida na Constituição, mediante ajuda ou subsídio de Estado estrangeiro ou de organização estrangeira ou de caráter internacional; (IV) subverter, por meios violentos, a ordem política e social, com o fim de estabelecer ditadura de classe social, de grupo ou de indivíduo.

          No art. 3º, a lei prevê a pena de reclusão de 3 a 9 anos para aqueles que promovam insurreição armada contra os poderes do Estado.

          O art. 4º tipifica como crime a prática de atos destinados a provocar a guerra civil, caso esta dela advenha, bem como a devastação, saque, incêndio, depredação, desordem de modo a causar danos materiais ou a suscitar terror, com o fim de atentar contra a segurança do Estado.

          Pelo art. 5º, a tentativa de mudar, por meios violentos, a Constituição, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela estabelecida, constitui crime cuja pena é de reclusão de 3 a 10 anos aos cabeças e de 2 a 6 anos, aos demais agentes, quando não couber pena mais grave. No caso em que o agente do crime for o Presidente da República, o Presidente de qualquer das Casas do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, Ministro de Estado, Governador ou Secretário de governo estadual, o Chefe do Estado Maior do Exército, da Armada ou da Aeronáutica, o Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública ou Comandante de unidade militar federal, estadual ou do Distrito Federal, a pena será acrescida de um terço.

          Atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade do Presidente da República, de quem eventualmente o substituir ou no território nacional, de Chefe de Estado estrangeiro; do Vice-Presidente da República, Ministros de Estados, Chefes do Estado Maior Geral, Chefes do Estado Maior do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, Presidente do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados, Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Governadores de Estados ou de Territórios, comandantes de unidades militares, federais ou estaduais, ou da Polícia Militar do Distrito Federal, bem como, no território nacional, de representante diplomático, ou especial, de Estado estrangeiro com o fim de facilitar insurreição armada; de magistrado, senador ou deputado, para impedir ato de ofício ou função ou em represália do que houver praticado, constitui crime na forma do art. 6º.

          A concentração ou associação de mais de três pessoas para a prática dos crimes previstos nos arts. 1º ao 6º constitui, de igual modo, crime punido com reclusão de 1 a 4 anos. Por seu turno, é crime impedir que aconteça reunião ou livre funcionamento de qualquer dos poderes políticos da União.

          A reorganização ou simples tentativa de partido político ou associação dissolvidos por força de lei ou fazer funcionas nas mesmas condições quando legalmente suspenso, implica na pena de reclusão de 2 a 5 anos. A mera filiação ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento também é crime apenado com reclusão de 1 a 4 anos.

          Adiante, no art. 11, o legislador tratou como crime contra a segurança nacional a manifestação de pensamento, mediante propaganda, quando o objetivo for a utilização de processos violentos para a subversão da ordem política ou social, de ódio de raça, de religião ou de classe, e, finalmente, de guerra. A punição será estendida àqueles que façam a distribuição ostensiva ou clandestina, mas sempre inequivocamente dolosa, de boletins ou panfletos, por meio dos quais se faça a propaganda proibida. Do mesmo modo, pune-se a incitação direta e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência.

          O exercício do direito de greve, ou apenas a tentativa, assim como a desobediência civil, desde que constitua paralisação de serviços públicos ou de abastecimento da cidade, constitui crime.

          O art. 14. estatui que provocar animosidades entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as classes ou instituições civis é crime. Como o é a incitação pública ou preparativo de atentado contra pessoa ou bens, por motivos políticos, sociais ou religiosos.

          Nos termos do art. 16, fabricar, ter sob a sua guarda ou à sua disposição, possuir, importar, exportar, comprar ou vender, trocar, ceder ou emprestar transporte por conta própria ou de outrem, substâncias ou engenhos explosivos ou armas de guerra ou utilizáveis como instrumento de destruição ou terror, tudo em quantidade e mais condições indicativas de intenção criminosa, é crime contra a segurança nacional.

          A convocação ou realização de comício ou reunião pública a céu aberto, em lugar não autorizado pela polícia, ou desobedecer a determinação da autoridade competente sobre a sua dissolução, quando tumultuosa ou armada, são condutas tipificadas como crime.

          Também é crime contra a segurança nacional a conduta que implique em perturbar ou interromper, com violências, ameaças, ou assuadas, conferência internacional realizada no território brasileiro de que participem delegados de governos de outros países. Igual tratamento recebe aquele que perturbar ou interromper com violências, ameaças ou assuadas, reuniões de assembléias legislativas, câmaras de vereadores, tribunais de justiça ou audiências de juízes.

          Praticar ato público que exprima menosprezo, vilipêndio ou ultraje ao nome do Brasil, ou a qualquer dos símbolos nacionais dos Estados ou dos Municípios, na forma do art. 22, é crime com pena de detenção de 1 a 2 anos.

          A ofensa física, injúria ou coação, por motivos doutrinários, políticos ou sociais, de pessoa que estiver sob sua autoridade, ou permitir que outrem o faça, desde que a ação ou omissão seja de autoridade judiciária ou policial, constitui crime com pena de reclusão de 1 a 2 anos.

          Na dicção do art. 24, constituírem ou manterem os partidos, associações em geral, ou, mesmo, o particular, milícias ou organizações de tipo militar de qualquer natureza ou forma armadas ou não, com ou sem fardamento, caracterizadas pela finalidade combativa e pela subordinação hierárquica.

          Na forma do art. 25, promover ou manter, no território nacional, serviço secreto destinado à espionagem, constitui crime cuja pena é de reclusão de 8 a 20 anos, agravada de um terço na reincidência. O fornecimento, mesmo gratuito, à autoridade estrangeira, civil ou militar, ou a estrangeiros, de informações ou documentos de caráter estratégico e militar ou de qualquer modo relacionados com a defesa nacional, é crime com pena de reclusão de 2 a 4 anos. Pela lei, ainda constitui ato de espionagem a utilização de qualquer meio de comunicação, para dar indicações que possam pôr em perigo a defesa nacional; possuir ou ter sob a sua guarda ou à sua disposição, importar, comprar ou vender, ceder ou emprestar ou permutar, por conta própria ou de outrem, câmara aerofotográfica, sem licença da autoridade competente; conseguir, transmitir ou revelar, para o fim de espionagem política ou militar, documento, notícia ou informação que em defesa da segurança do Estado, ou no seu interesse político, interno ou internacional, deva permanecer secreto.

          Os atos de sabotagem constituem crime, quando for praticados em atividades fundamentais à vida coletiva; em indústria básica ou essencial à defesa nacional; no curso de grave crise econômica. Constituem, também, sabotagem, os atos irregulares reiterados e comprovadamente destinados a prejudicar o curso normal do trabalho ou a diminuir a sua produção.

          Pelo art. 40 são considerados “cabeças” os que tiverem excitado ou animado a prática do crime, ou promovido ou organizado a cooperação na sua execução, ou dirigido ou controlado as atividades dos demais agentes.

          Em matéria competencial, ficou reservada à Justiça Militar, na forma da legislação processual respectiva, o processo e julgamento dos crimes previstos nos arts. 2º, incisos I a III, 6º, quando a vitima for autoridade militar e, finalmente, 24, 25, 26, 27, 28 e 29. Nos demais crimes definidos na lei, competem à Justiça ordinária, com recurso para o Supremo Tribunal Federal (Constituição, art. 101, II, c) e serão regulados pelo disposto no Código de Processo Penal.

          Em matéria de prisão cautelar, durante a fase policial e o processo, a autoridade competente para a sua formação, ex-officio, a requerimento fundamentado do representante do Ministério Público ou de autoridade policial, poderá decretar a prisão preventiva do indiciado, ou determinar a sua permanência no local onde a sua presença for necessária à elucidação dos fatos a apurar. A ordem será dada por escrito, intimando-se por mandado o interessado e deixando-se cópia do mesmo em seu poder. A medida será revogada desde que não se faça mais necessária, ou decorridos trinta dias de sua decretação, salvo sendo prorrogada uma vez, por igual prazo, mediante a alegação de justo motivo, apreciada pelo Juiz. Quando o local de permanência não for o do domicílio do indicado, as despesas de sua estada serão indenizadas pontualmente pela autoridade competente, policial ou judiciária, conforme for o caso, por conta do Tesouro Nacional.

 

10.    UMA VISÃO GERAL DOS JULGADOS DO SUPREMO SOBRE CRIMES POLÍTICOS.

          No período investigado, funcionaram como Relatores ou Relatores para o Acórdão os seguintes Ministros:[17] Abner de Vasconcelos, Afrânio Antônio da Costa, Aníbal Freire, Ary Franco, Barros Barreto, Cândido Motta, Edgard Costa, Edmundo Macedo Ludolf, Gonçalves de Oliveira, Hahnemann Guimarães, Henrique D'Ávila, Lafayette de Andrada, Luiz Galloti, Mario Guimarães, Nelson Hungria, Orozimbo Nonato, Pedro Chaves, Ribeiro da Costa, Ribeiro da Costa, Rocha Lagoa, Sampaio Costa e Villas Bôas.

          Em pesquisa realizada no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, no dia 27 de agosto de 2007, às 09H03, com a expressão de busca “crimes políticos” e “crime político”, no período de 1º de janeiro de 1946 a 31 de março de 1964, resultou em 101 acórdãos. Desses, nem todos estavam disponíveis para download; outros versavam sobre extradição de estrangeiro; alguns diziam respeito à matéria cível. Restaram lidos e analisados 76 acórdãos, ou seja, 75,25% dos acórdãos versavam sobre o tema objeto deste trabalho.

          Do total dos acórdãos lidos e analisados, 16,83% chegaram ao Supremo em razão de sua competência originária e 82,89% em grau de recurso, seja recurso criminal (RC), apelação criminal (ACR) ou recurso em habeas corpus (RHC).

          A pesquisa aponta, quanto ao aspecto regional, que a maior concentração de demandas junto ao Supremo veio do Sudeste (85,53%), seguido do Sul (9,21%) e, logo em seguida, do Nordeste (5,26%). Não aparece nenhum julgado com origem nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. A conclusão que se pode chegar é que se trata de um período em que os crimes políticos, à luz da lei de segurança nacional, concentraram-se nos centros urbanos mais desenvolvidos do Brasil.

          Quanto ao enquadramento legal da conduta descrita como crime político, 5,26% dos acórdãos não apresentam nenhuma identificação; 36,84% dos acórdãos remetem ao Decreto-Lei nº 431/1938; 46,05% enquadram na Lei nº 1.802/53; e o restante, 11,84%, a outros diplomas legislativos.

          Em 69,74% dos casos o Supremo decidiu à unanimidade de votos; e em 30,26% por maioria de votos. A grande divergência residia em saber se o fato de alguém portar, sem divulgar, material subversivo consistiria ou não em crime político. Nesta situação, a minoria, vencida, era formada pelos Ministros Orozimbo Nonato, Nelson Hungria, Hahnemann Guimarães e Lafayette Andrada.

          No Primeiro Grau de Jurisdição, pela análise dos acórdãos, pode-se apresentar os seguintes resultados: em 67,11% dos casos considerou-se a existência de crime político; em 35,53% dos casos há menção expressa de o crime político ter ferido a segurança nacional; em 32,89% dos casos, expressamente, há alusão ao fato de o crime político ter violado a ordem pública; e, finalmente, em 69,74% dos casos houve prisão dos envolvidos.

          O Ministério Público de Primeiro Grau, em 97,37% dos casos, por ser titular da ação penal, além de oferecer denúncia, pediu a prisão dos envolvidos. Relativamente ao Órgão Ministerial com atuação junto ao Supremo, só é possível saber a posição adotada em 55,26% dos casos. Neste universo, em 66,67% dos casos o Parquet não pede a condenação.

          Em trâmite no Supremo Tribunal Federal, percebe-se que em 50% dos casos o Tribunal entendeu ter havido crime político. A razão disso é para fixar sua competência para conhecer do pedido. Mas em apenas 34,21% dos julgados o Supremo pronunciou-se pela condenação. Assim agindo, o Tribunal deu, à Lei de Segurança Nacional, uma interpretação em favor das liberdades individuais, à medida que entendia que a conduta constituía liberdade de manifestação de pensamento amparada pela Constituição. Isso pelo fato de o Supremo, naquele período, estar alinhado com os demais Poderes da República, numa composição mais democrática.

          Dos crimes entendidos como políticos, em 26,32% dos casos o Supremo concluiu que houve violação à segurança nacional, contra 22,37% por ferimento à ordem pública.

          Em 18,42% dos casos o Supremo deu por sua incompetência, mandado que os autos fossem remetidos aos Tribunais locais para julgamento dos recursos.

          A maioria dos acórdãos versa sobre liberdade de manifestação de pensamento, envolvendo militares e civis. Há casos envolvendo o exercício do direito de greve. São poucos os julgamentos sobre a federação. Tem um caso de típico erro judicial grosseiro, em que o réu havia praticado crime comum, mas estava respondendo por crime político.

          Em geral, a prisão, com base na Lei de Segurança Nacional, era feita pelo Delegado de Polícia e o Ministério Público de 1º Grau oferecia denúncia. Nem sempre é possível concluir sobre o posicionamento do Órgão Ministerial de 2ª Instância, pois inexistente, em grande parte dos julgados, referência à essa posição, seja no relatório ou nos votos.

          No Juiz singular, as decisões, quase sempre, davam pela condenação. Advinda a sentença condenatória, necessariamente, por conta da remessa oficial, ou mesmo em virtude da interposição de recurso voluntário, os autos chegavam ao Supremo, após parecer do Parquet.

          A lei aplicada, majoritariamente, foi a de nº 1.802/53, seguida do Decreto-Lei nº 431/35. O Supremo, com a Constituição de 1946, entendeu pela não recepção do Decreto-Lei ante o novo texto Constitucional. Em algumas oportunidades o STF aplicou a Lei de Imprensa.

           

11.    AS RAZÕES DE FATO DAS DEMANDAS.

          Sabendo-se que a expressão de busca recaiu sobre “crime político”, o agrupamento dos acórdãos, no período sob investigação, para fins de facilitação expositiva neste segmento, respeitará natureza do fato tipificado como conduta delituosa, dentro de uma relação direta com outro direito sob tutela, a saber, (a) crime político versus direitos individuais (liberdade de associação; liberdade de manifestação do pensamento; etc.); (b) crime político versus direitos sociais (direito de greve e demais direitos trabalhistas); (c) crime político versus liberdade de imprensa; e (d) temas diversificados (crimes comuns, crimes de guerra, levantes, motins, etc.).

          Há um caso de prisão preventiva de três sargentos, que portavam boletins subversivos encontrados no automóvel que os levava ao quartel.

          Detenção da paciente, em flagrante, por distribuir jornais, panfletos e boletins a operários da fábrica com ânimo deliberado de incitar luta de classes.

          Prisão em flagrante do réu portando panfletos relativos ao Congresso Continental de Solidariedade a Cuba.

          Preso em flagrante por pichação, como ato de protesto contra a República Francesa, devido à guerra das lagostas.

          Réu detido ilegalmente, por investigadores do Departamento de Ordem Política e Social, ao distribuir boletim comunista quando da ocorrência de plebiscito.

          Paciente denunciado por crime comum e por crime político, porque quis dar liberdade, à força, a uns lavradores presos.

          Indiciados por instigar pessoas do povo contra autoridades do Município e a ordem legal, causando grave agitação social, e usando de grave ameaça tentaram arrebatar camponeses presos.

          Preso por escrever manifesto incitando à rebelião as forças armadas. Prisão feita por autoridade incompetente, sem mandado judicial e sem comunicação da prisão à autoridade judiciária.

          Prisão por reunião pública com motivos políticos sem consulta à polícia, nem designação prévia, nem pedido de lugar; e este não era o designado pelas autoridades locais para tal.

          Guatemalteco preso sem qualquer ordem escrita da autoridade competente e por mais de quarenta e oito horas, constituindo prisão ilegal, apesar de desconhecer o motivo de sua prisão. Depois foi acusado de usar passaporte falso.

          Paciente presa por propagar idéias extremistas, distribuindo boletins subversivos na cidade de Campinas.

          Requerente confessou co-autoria do crime imputado e sua participação em atividade de organização de sociedade subversiva do Estado.

          Apelante acusada de lesão corporal e atos que atentam contra segurança do Estado, ordem pública e segurança nacional, por portar panfletos subversivos em desfile militar.

          Prisão em flagrante delito por fazer propaganda ideológica do Partido Comunista.

          Preso, sem mandado, na casa do sogro e levado à cadeia, por estar lendo material considerado subversivo - jornal e manifesto – do Partido Comunista.

          Pacientes denunciados e incursos, uns na penas do art. 9º, outros na do art. 10º, da Lei nº 1.802/53. Dessa sentença o juiz da causa recorreu ex-officio. Não houve recurso voluntário.

          Sentença que negou o pedido de cancelamento de naturalização sob o argumento de prática subversiva e atividade nociva ao interesse nacional.

          Após o suicídio de Vargas, o acusado, antigo integrante do Partido Comunista do Brasil, participou de motins em Belo Horizonte, quando a Capital mineira viu-se convulsionada por tumultos e depredações

          Acusado de crime político por envolvimento em briga de correligionários que queriam que o acusado desistisse de deixar a agremiação partidária que houvera saído ao renunciar ao cargo de edil de Itanópolis-SP.

          Preso por estar na posse de vários materiais considerados subversivos, por dizer respeito à causa comunista.

          Preso pela autoridade policial por crime político - material subversivo, o Juiz concedeu o habeas corpus porque entendeu inexistente o crime político.

          Réu preso por ser comunista e estar na posse de boletins e panfletos do Partido Comunista.

          Concedido habeas corpus no primeiro grau e mantido no Supremo porque não é crime político. Os pacientes foram denunciados com incursos na Lei de Segurança Nacional.

          Sentença que absolveu, por falta de prova, acusado de ter cometido crime contra a segurança nacional.

          Denunciados com base na antiga Lei de Segurança Nacional, os réus foram absolvidos. Da sentença não houve recurso do Ministério Público

          Denunciado por crime político, ao réu foi concedido habeas corpus pelo juiz de primeiro grau. O Ministério Público recorreu e houve remessa oficial.

          Chauffer preso por portar folhetins do Partido Comunista e jornal da URSS. O Juiz a quo o absolveu, porque ninguém pode ser punido pelo delito de opinião.

          Preso por portar grande quantidade de material de propaganda comunista. O Juiz monocrático o absolveu.

          Tendo sido denunciado como incurso no art. 3º, nº 25, do Dec.-Lei nº 431/38, o réu foi absolvido da acusação de crime político, seguido de remessa oficial ao STF.

          Ordem de habeas corpus impetrado em favor de réu condenado por crime político que estava cumprindo a pena em prisão comum quando a Lei de Segurança Nacional garantia-lhe a especial. O Juiz ordenador da prisão tinha ciência da situação do réu.

          Preso por ordem do Ministro da Guerra sob a alegativa de cometimento de crimes capitulados no art. 3º, VIII e IX, do Dec.-Lei nº 431/1938.

          Tendo sido denunciada como incursa na LSN, a ré foi absolvida da acusação de crime, seguido de remessa oficial ao STF.

          O réu, conhecido comunista, foi preso por ter atirado uma garrafa de piche na vitrine da casa "Standard Oil Company". O Juiz o absolveu, muito "embora seja o acusado inegavelmente um comunista".

          Integrantes do Centro Rui Barbosa de Defesa das Liberdades Públicas foram presos, pela Polícia, sob acusação de pertencerem ao Partido Comunista. O MP pede que o Juiz observe, na sentença, os antecedentes ideológicos dos acusados a fim de condená-los.

          Na madrugada de 26.11.50, o réu foi preso em flagrante quando distribuía o "Manifestos Prestes", com incitamento às massas para a luta violenta e de subversão ao atual regime político-social. Confessou-se comunista, cuja implantação importaria na igualdade de direitos. Foi condenado pelo Juiz monocrático.

          Estrangeira presa com farto material subversivo, tendo confessado, perante a Polícia, que "vem se dedicando ao serviço do comunismo". Ao Juiz negou ter confessado ser comunista. O Juiz a absolveu por entender que inexistiu crime político, mas simples manifestação de pensamento.

          Preso com material subversivo, com passado de militante comunista, foi condenado a 2 anos e 6 meses de reclusão.

          Presa com material subversivo, sem, conduto, ter sido provada a sua divulgação, a ré foi condenada.

          Presos por portarem boletim convidando o povo para a Conferência da Paz, proibida, pelo Ministro do Interior, por seu caráter subversivo, mas autorizada por decisão judicial. O Juiz não condenou por entender não ter havido crime.

          Preso porque distribuía, dentro de um bonde que trafegava em zona freqüentada por operários, boletins com dizeres subversivos que chamava de "tubarões" magistrados, deputados, generais e industriais, e onde pedia a mobilização contra aprovação da nova LSN. Foi absolvido em 1º grau.

          Preso e condenado a 2 anos de prisão por distribuir e guardar em seu poder panfletos que exaltam o aniversário de um líder totalitário, no caso, o camarada Stalin, e por preconizar a subversão à ordem pública.

          O réu foi condenado porque a polícia apreendeu, em sua residência, impressos de propaganda de candidato a deputado federal considerado comunista, jornais e vários “Manifestos Prestes”.

          Denunciados por se entregarem de diversas formas a propaganda comunista entre lavradores e por organizarem uma entidade que tinha por finalidade a subversão da ordem social e política. O Juiz rejeitou a denúncia.

          Presos em flagrante delito enquanto se reuniam em local fechado visando a organização do PCB local. Foram denunciados por crime político e, em seguida, por crime comum. Pelo crime político o STF concedeu habeas corpus anterior e agora aprecia o habeas corpus pelo crime comum.

           Acusados de missão de propaganda de credo comunista, entraram numa oficina e distribuíram jornais e boletins aos operários.

          Luiz Carlos Prestes foi denunciado por crime político, por ter concedido entrevista à “Tribuna Popular”. Como a sentença o condenou a mais de 10 anos, a discussão foi em torno da necessidade de decretar-se, ex lege, sua prisão preventiva. O Juiz não a decretou.

          Através da agremiação SHINDO-ROMMEI os acusados forçaram, pelo terror, os nipônicos não filiados àquela associação a admitirem que as Nações Unidas foram vencidas na segunda Grande Guerra. Foram condenados a 2 anos e 4 meses de prisão.

          A acusada foi absolvida da acusação de propaganda comunista e de injúria aos poderes públicos. Houve remessa oficial.

 

 

12.    CRIME POLÍTICO VERSUS DIREITOS SOCIAIS.

          Crime contra a organização de trabalho por greve dos transportes de carga e procurar, em piquetes, impedir outros de trabalhar, causando interrupção de serviço de interesse coletivo.

          Preso por tentar convencer empregados a aderir à greve liderada pelo Sindicato Rodoviário e Anexos do Estado da Guanabara.

          Presos por promover agitados comícios populares, incitando o trabalhador à greve, atentando contra ordem política e social.

          Presos por autoria de violências e atrocidades e por participar do bando de Porecatú, induzindo empregados e empregadores a cessação ou suspensão de trabalho, bem como por fazer reivindicação de terras.

          Preso por Delegado, em flagrante, tendo o juiz concedido habeas corpus por tratar de grevista e não haver norma proibindo a greve pacífica, podendo, no máximo, ter ocorrido crime comum.

          Vereador foi preso porque recebia, na sede do partido, camponeses e os orientava no sentido de obterem férias. Também foi denunciado por ter em seu poder material subversivo.

 

13.    CRIME POLÍTICO VERSUS LIBERDADE DE IMPRENSA.

          Jornalista preso e condenado, com suspensão condicional da pena, por suposto crime político e de imprensa.

          Denúncia decorrente de publicação, na imprensa, do projeto de estatuto de novo partido: crime político cuja punibilidade já se fazia extinta pela prescrição que atingiu todas as publicações, exceto três delas.

          Jornalista denunciado por publicar artigos em jornal, provocando animosidade entre as classes armadas, ou delas contra as classes ou instituições civis.

          Crime de injúria e calúnia por meio da imprensa não constitui crime político.

          Conflito de competência entre a Justiça Comum e a Militar em razão de o Juiz comum ter declinado para a Justiça Militar o julgamento de acusado de crime político, no caso, o proprietário do Jornal "O Popular", com nítida inclinação comunista e, também, por haver incitado a massa proletária à subversão.

 

14.    TEMAS DIVERSIFICADOS.

          Em outro, o Superior Tribunal Militar condenou paciente anistiado por propaganda desmoralizadora do governo, por tentar quebrar o moral e aliciar as tropas a desertarem.

          Pacientes acusados de receptação culposa pedem o reconhecimento ao Superior Tribunal Militar da competência do juízo de direito da Comarca de Duque de Caxias para conhecer dos fatos.

          Crime de homicídio praticado por autoridade pública contra presidente de Tribunal local, por motivo vinculado ao exercício da função de presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.           Crime comum em 1ª Instância. Crime político em 2ª instância. Acusado confessou ter ido ao gabinete do Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para praticar o crime de homicídio.

          Pacientes, participantes do Movimento de Aragarças, impetram pedido de habeas corpus alegando incompetência da Justiça Militar.

          Usina solicitou aos responsáveis pela higiene e saúde públicas sustação da venda do leite cru à população. Depois fez contratos sem contentar rivais, havendo danos materiais e lesões diversas

          Militar preso e recolhido ao Quartel General da Terceira Zona Aérea, por participar do episódio de Aragarças.

          Condenado a morte por Tribunal Francês por crime de traição: participação em empreendimento tendente à desmoralização do exército ou nação em tempo de guerra. Foi ameaçado de prisão e de extradição.

          Menor preso por doença venérea que põe em risco saúde de terceiros.[18]

          Mulher adentra no pleno da câmara de vereadores e lança ofensas contra edil em revide a ofensas que este lhe fizera.

          Crime comum de injúria julgado, como tal, pelas instâncias ordinárias e pelo Supremo Tribunal Federal.

          Denunciado porque em frente da casa do Denunciante havia um telefone público que, necessitando dele fazer uso em razão de doença em membro de sua família, o Réu foi por ele impedido. A denúncia foi por incitação e atentado contra autoridade pública.

          Mais de uma dezena de pessoas foram presas e condenadas por terem tramado uma tentativa de revolução agrária, com planos para subverter a ordem e atentar contra pessoas e coisas.

 

 

15.    AS RAZÕES DE DIREITO DO SUPREMO NA SOLUÇÃO DOS LITÍGIOS ENVOLVENDO A APLICAÇÃO DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL.

          Adentrando no mérito das decisões, a pesquisa revela que, dos acórdãos disponíveis e analisados, 65,79% versaram sobre a tensão direitos fundamentais versus segurança do Estado; 7,89% sobre a tensão direitos sociais versus  segurança do Estado; igual percentual, ou seja, 7,89% entre a tensão liberdade de imprensa versus segurança do Estado. O restante fica para crimes comuns (11,84%); crimes militares ou de guerra (3,95%); e 2,63% para assuntos ligados a “movimentos revolucionários”.

          Em geral, a conformação da Lei de Segurança Nacional pelo Supremo levou em consideração os princípios da Constituição relativamente aos direitos fundamentais.

          Exemplos claros podem ser vistos nas seguintes passagens:

RC 1045/RJ – Relator Ministro Gonçalves de Oliveira

          Como já tenho ponderado, em outras decisões, a aplicação da lei de Segurança deve ser limitada a extremos necessários sem o que neutralizaria os princípios mais fundamentais da Constituição da República entre êles o da liberdade de manifestação do pensamento.

 

 

RHC 39770/SP – Relator Ministro Cândido Motta

... a simples divulgação de doutrina, sem incitamento direto, sem orientação expressa, direta e inequívocamente dolosa no sentido irretoquível de transformação, pela violência do ‘status’ político e social vigente, não falar na aplicação dos dispositivos da Lei nº 1802, de 5 de janeiro de 1953.

 

          Quanto aos direitos sociais, dentre eles o próprio direito de greve, o Supremo não lhes retirou eficácia, muito embora não tenha tido uma posição favorável ao exercício do direito de greve. No julgamento da ACR 1451/SP houve uma divisão entre os que defendiam o direito de greve como direito fundamental e os que pugnavam pela mitigação desse direito.

          A passagem colhida do voto vencido do Ministro Orozimbo Nonato vai ao encontro da primeira tese:

          O que êles pregam ou insinuam é a luta organizada para impedir a aprovação do projeto da nova Lei de Segurança, sem referir-se a meios violentos, e o uso da greve para o fim de aumento de salários, igualmente sem dizer que a greve deva ser violenta, de modo a afetar a segurança do Estado ou a ordem político-social. A greve pacífica foi erigida pela Constituição vigente, errada ou acertadamente, entre os direitos fundamentais, de modo que pregá-la não pode constituir crime.

 

          Não foi esta a posição adotada pelo Supremo no deslinde da questão. Prevaleceu a tese segundo a qual o exercício do direito de greve perde para a segurança do Estado. O voto proferido pelo Ministro Abner de Vasconcelos ressalta o caráter contrário à ordem pública do fatos postos em julgamento:

          ... a impressão colhida através do relatório e da discussão dos eminentes Ministros que me antecederam, deixou-me a convicção de que, no caso, se trata de uma manobras destinada a expandir idéias contrárias ao regime [aqui a referência é ao regime democrático] e à ordem pública, verdadeira propaganda em que o Estado de São Paulo infelizmente vive completamente envolvido.

 

          Ainda sobre o tema – direitos sociais -, na ACR 1567/RJ, da relatoria do Ministro Gonçalves de Oliveira, a posição do Supremo foi pela inexistência de crime político na manifestação dos envolvidos:

          ... é condição essencial para que um crime contra a organização do trabalho seja considerado crime político, que se inspire numa intenção política, obedeça ao intento de subverter a ordem social e política.

 

          A principal argumentação utilizada para aplicar a Lei de Segurança Nacional em detrimento das garantias individuais, sociais e, ainda, a liberdade de imprensa, estava o valor “proteção do regime democrático” adotado no país desde a proclamação da República.

          A hipótese era de aplicação do art. 141, § 5º, da Constituição vigente, que inadmitia a “propaganda de processos violentos para subverter a ordem política e social.[19]

          No julgamento da ACR 1445/SP, o Ministro Macedo Ludolf entende que o exercício da liberdade de imprensa que propaga processos violentos para subverter a ordem política e social implica em atentado contra o regime republicano e democrático,

          ... é certo, constituem um incitamento à reação e à luta, em sentido já por todos conhecido, ou seja, com o fito indisfarçável de destruir o regime republicano e democrático, entre nós instituído.

 

          Essas são, em linhas gerais, as razões de fato das demandas.

 

16.    TABELAS.

 

          16.1  Processos julgados pelo Supremo em razão da Região Geográfica.

 

 

         

          16.2. Lei na qual o envolvido foi enquadrado.

 

 

          16.3  Resultado do julgamento no Supremo.

 

 

 

 

 

 

 

 

          16.4  Resultado no 1º Grau de Jurisdição.[20]

 

                   16.4.1                 Houve crime político?

 

                   16.4.2                 Feriu a segurança nacional?

                   16.4.3                 Feriu a ordem pública?

 

 

 

                   16.4.4                 Houve condenação/prisão?

 

 

 

 

 

          16.5  Posicionamento do Ministério Público.

 

 

 

                   16.5.1                 O Ministério Público de 1ª Instância pediu a condenação/prisão?

 

 

 

 

 

                  

                   16.5.2                 O Ministério Público junto ao Supremo pediu a condenação/prisão?

 

          16.6  Resultado no Supremo Tribunal Federal.

 

 

                    16.6.1                 Houve crime político?

 

                   16.6.2                 Feriu a segurança nacional?

 

                   16.6.3                 Feriu a ordem pública?

 

 

                   16.6.4                 Houve condenação/prisão?

 

 

 

 

17.    PARA CONCLUIR.

 

          A história do Supremo Tribunal Federal pode ser contada sob vários ângulos de observação. Para os fins do presente trabalho, que cuida dos crimes políticos, a história do Supremo está atrelada à Lei de Segurança Nacional, gestada dentro da Escola Superior de Guerra, fruto da Doutrina da Segurança Nacional, que vivia a idéia de guerra total, tendo como aliado estratégico do Brasil os Estados Unidos da América, e, como inimigo externo as idéias econômicas, políticas e sociais, capitaneadas pela  antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e, como inimigo interno, os que, em terras brasileiras, eram rotulados de “comunistas”.

          A Lei de Segurança Nacional data de 1953. Daí a razão do marco inicial desta monografia ser o ano de 1946, data em que foi promulgada a nova Constituição, considerada republicana e democrática. Período conturbado pela tensão da guerra fria que se iniciava.

          Como pode ser observado, embora sob o manto de Constituição democrática, o Supremo Tribunal Federal não titubeou em aplicar a Lei de Segurança Nacional quando em jogo o regime republicano e democrático brasileiro, mesmo se, para isso, fossem esvaziadas as garantias individuais e sociais albergadas na Carta Magna.

          A pesquisa revela que as causas postas a julgamento do Supremo advieram, sobretudo, dos grandes centros urbanos brasileiros, concentrando-se na região Sudeste, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro.

          Muito embora o Supremo apreciasse a causa à luz da Lei de Segurança Nacional, a fim de garantir-lhe a competência, na maioria dos casos não houve a condenação dos envolvidos.

          O Ministério Público de primeiro grau, como titular da ação penal, foi um fervoroso acusador do inimigo “comunista”, tendo oferecido denúncia em quase todos os casos que foram julgados pelo Supremo.

           

 

 

 

 

Referências.

 

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964 – 1984. Petrópolis: Vozes, 1984.

BATISTA, Nilo. Entrevista em agosto de 2003, à revista Caros Amigos.

COLLINGWOOD, Robin George. A idéia de história. 6ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1986.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Verbete país.

FUNARI, Pedro Paulo & NOELLI, Francisco Silva Noelli. Pré-história do Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

MARQUES, Adriana Aparecida. Concepções de defesa nacional no Brasil: 1950-1996. Campinas: [Dissertação de Mestrado], Universidade Estadual de Campinas, 2001.

MONTEIRO, Pedro Aurélio de Góes. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Rio de Janeiro: Andersen Editora, [s.d.].

PAIXÃO, Leonardo André. A função política do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: [Tese de Doutorado], Universidade de São Paulo, 2007.

PRIORI, Ângelo. A Doutrina de Segurança Nacional e o Manto dos Atos Institucionais durante a Ditadura Militar Brasileira. No endereço eletrônico  http://209.85.165.104/search?q=cache:TpXZU1Ju12wJ:www.espacoacademico.com.br/035/35priori.htm+doutrina+da+seguran%C3%A7a+nacional&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=3&gl=br, acesso em 26.nov.2007

RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D. Una Viaje por la Historia del Derecho. Buenos Aires: Editorial Quorum, 2004.

SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da Silva. História do direito português. 3ª Ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

 

 



[1] Professor de Direito Civil da Universidade Federal do Piauí e da Faculdade Piauiense. Doutorando em Direito. Advogado.

[2] Essa é a posição de FUNARI E NOELLI (2006, p. 9), quando escrevem: - “O Brasil é um país surgido em 1822, com menos de duzentos anos.”.

[3] Sobretudo no que se refere às funções do Estado.

[4] Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Verbete “país”: -  Do francês pays e este do latim page(n)se.”.

[5] Nilo Batista, entrevista em agosto de 2003, à revista Caros Amigos.

[6] Termo pejorativo utilizado para carimbar os militantes de esquerda no Brasil.

[7] No endereço eletrônico https://www.esg.br/esg.html, acesso em 25 de agosto de 2007.

[8] Cf. ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 19).

[10] Jovens Turcos ou Germanófilos é a referência ao grupo de oficiais brasileiros estagiaram na Alemanha. Cf. ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 25)

[11] Cf. ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 29).

[12] Cf. ADRIANA APARECIDA MARQUES (2001, p. 33).

[13] Itálicos no original. 2001, p. 44.

[14] Lei nº 224, de 11 de setembro de 1936.

[15] Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936.

[16] Respectivamente, Lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953; e Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953.

[17] A expressão “relator para o acórdão” é usada quando o relator original resta vencido. Assim, o primeiro voto divergente que abre a maioria passa a ser o “relator para o acórdão”.

[18] Caso demorado e típico erro judicial grosseiro. A ação foi processada como crime político quando, em verdade, tratava-se de crime contra a saúde de terceiros.

[19] ACR 1445/SP, Relator Ministro Macedo Ludolf.

[20] Apenas considerando os dados existentes na íntegra dos acórdãos e sem consulta aos autos do processo.